A libertação sexual não foi tomada a sério pela Igreja

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"Há uma continuidade da doutrina que acaba por não ter em consideração [o que as pessoas pensam], que já não está a chegar às pessoas", diz Autiero CATHAL MCNAUGHTON/REUTERS

O celibato deve ser discutido, a Igreja não levou a sério a revolução sexual dos anos 60 e nas questões da homossexualidade "há vivências dramáticas" e "discriminações" às quais a Igreja deve atender. Opiniões de Antonio Autiero, referência da teologia moral católica, que diz ser legítimo que, no caso dos abusos sexuais, se exija mais da Igreja. Por António Marujo

Professor de Teologia Moral, o italiano Antonio Autiero, 62 anos, dá aulas na Universidade de Münster (está há 28 anos na Alemanha), a mesma onde o actual Papa Bento XVI ensinou entre 1963 e 66, quando era ainda o padre Joseph Ratzinger. De passagem por Lisboa, Autiero falou com o P2 sobre as questões polémicas que atravessam a Igreja Católica.

Perante os abusos sexuais de membros do clero, que deve fazer a Igreja?

Antes de mais, deve tomar consciência de que é um momento muito delicado. Nas últimas décadas, a pedofilia estendeu-se dos Estados Unidos para a Europa - a Europa germânica foi particularmente atingida. O que é novo é a vastidão do fenómeno.

Podemos ser levados a pensar que o fenómeno está tão difundido que não há sistemas educativos eclesiásticos que não estejam tocados. Isso seria também uma reacção exagerada, não documentada e não justificada. As Igrejas - começa-se a falar também de situações na Igreja Evangélica na Alemanha - têm uma rede muito difundida de instituições educativas. Apesar destes casos, o grosso do sistema ainda é portador de valores e métodos positivos.

Há 20 anos, apareceram os primeiros casos no Canadá e os bispos publicaram um documento para resolver a situação. Nos outros países não se levou a sério o problema e talvez não se tenha feito o suficiente...

Estou de acordo: o compromisso inicial da Igreja norte-americana devia produzir um efeito maior, para romper a conspiração do silêncio. Não devemos fechar os olhos à responsabilidade que a Igreja teve nas décadas passadas, por amor de outros valores e para salvaguarda de outros princípios. Mas, como instituição, a Igreja não acelerou o processo de ruptura. Antes, mesmo por inexperiência, mas sobretudo por medo e falta de capacidade profética, tornou-se cúmplice desta difusão do silêncio.

O que está em causa nesta questão? O celibato, a educação, a revolução sexual?

A revolução sexual dos anos 60 foi uma causa apontada por um bispo da Alemanha. Não tem justificação. Se quisermos ser exactos, direi até o contrário: este é o sinal de que a parte verdadeiramente positiva e sã da libertação sexual não foi tomada a sério pela Igreja.

No aspecto antropológico, a libertação sexual pertencia à cultura emancipadora dos anos 60. Tinha, na sua sã intenção, a finalidade de levar o indivíduo a dar maior importância à responsabilidade pessoal e interpessoal. Não só na própria sexualidade mas também na relação com o outro. Se tivesse sido tomada a sério, a revolução sexual teria o efeito contrário: a pedofilia é uma conduta que não toma a sério a relação, parte de um sujeito e reduz o outro a um objecto.

Há 30 ou 40 anos não havia uma consciência tão forte contra a pedofilia.

Sim, se hoje temos esta evidência, é porque quem foi vítima agora pode falar. E há também uma consciência colectiva que cresceu e que não estigmatiza a vítima. O primeiro sujeito que deve ser responsabilizado é o agressor.

O jornalista italiano Luigi Accattoli disse que, desde 1995, foram detectados mais de cinco mil casos e, desses, pouco mais de 100 são vítimas de padres. A Igreja Católica é a única sob acusação ou isto é uma desculpa para a Igreja?

Na Alemanha, em escolas de elite, também há casos deste género. Isto coloca o fenómeno num contexto mais vasto: como sociedade, devemos, antes de fazer de uma instituição o bode expiatório, compreender a vastidão da problemática. Isto não retira à Igreja a sua responsabilidade, seja numericamente, seja porque a Igreja tem de dar testemunho. É legítimo que se peça mais à Igreja.

Hans Küng escreveu que está em questão o celibato obrigatório, defendendo que há um sistema que se autoprotege. Está de acordo?

Küng distingue que nem todos os celibatários são pedófilos, nem todos os pedófilos são celibatários. Há pedofilia em contextos muito amplos, como na Internet. Aproximo-me dele na valorização dos desafios do sistema do celibato obrigatório, dos quais a Igreja está consciente: como desenvolver processos e itinerários educativos dos futuros sacerdotes, de modo a que a maturidade sexual possa ser verdadeiramente conseguida. O celibato é o contexto, não é a causa.

O cardeal Cristoph Schönborn [arcebispo de Viena] dizia que se pode debater tudo, incluindo o celibato. O arcebispo de Salzburgo repetiu a ideia, mas o Papa disse que o celibato tem características sagradas. O que fazer?

Esta contraposição não é nova, nem de hoje. Não discutir não é uma solução original, nova e actual do problema.

Então, devemos discuti-lo?

Sim.

O Vaticano II falou da consciência como o santuário íntimo de encontro do homem com Deus. Mas o discurso dominante insiste na obrigação de cumprir normas e não tanto no valor da consciência.

Isso é verdade, se tivermos em conta que a autoridade do magistério diz respeito à objectividade e à generalidade do comportamento. Mas a responsabilidade moral assume-a o sujeito perante a própria consciência, Deus e a comunidade, determinando a resposta oportuna e correcta à indicação do magistério.

Se são normas que dizem respeito à esfera individual e levam o indivíduo, de forma responsável, a dar uma resposta diferente do magistério, é uma coisa. Mas se há valores e interesses de terceiros, já não é só uma relação entre magistério e sujeito: há também uma terceira pessoa, em geral débil e desprotegida, em relação à qual o magistério joga um factor advocatório.

Quando sabemos que para redigir a encíclica Humanae Vitae [que desaconselhou os anticoncepcionais] se confrontaram dois grupos, podemos pensar que hoje a doutrina poderia ser outra.

Não o podemos negar. Isso faz perceber também o valor histórico das respostas do magistério, que não está fora da realidade e de um contexto [histórico]. Não se sabe o que aconteceria se o Papa Paulo VI tivesse dado mais espaço à opinião da maioria na Humanae Vitae.

Quer dizer que, se muda o contexto, devo perguntar se a resposta é ainda válida. Há uma continuidade da doutrina que acaba por não ter em consideração [o que as pessoas pensam], que já não está a chegar às pessoas.

A oposição da Igreja ao aborto terá sido um dos factores que levou outros sectores a defenderem leis mais liberais. Se a Igreja admitisse que as pessoas decidissem em dadas situações, essa posição não seria mais aceite pela sociedade do que estando sempre contra?

O problema é que, retendo o princípio fundamental de que o respeito pela vida é imutável e considerando que a missão da Igreja é "proclamar a verdade dos princípios" seja qual for o efeito, a Igreja não tem em conta as situações concretas e não leva a sério a verdade e autenticidade das pessoas e comunidades que sofrem determinadas situações. Há um afastamento entre os princípios - que não fazem mal a ninguém, mas não fazem bem à comunidade - e as pessoas, que não se reconhecem na palavra da Igreja.

E o resultado?

O efeito último é que, do ponto de vista estratégico, para querer "salvar tudo", acaba-se por não recuperar sequer a parte possível da criação de consenso e de mobilização da responsabilidade.

A Igreja e a sociedade civil (através de expressões de consenso democrático, como o Parlamento) confrontam-se sobre temas como este. Mas as finalidades são diferentes: a Igreja fala para promover uma "mensagem moral". O Estado não deve falar para promover uma mensagem moral. De outro modo, cairíamos numa concepção do Estado como fonte de moralidade.

Então, à luz da teologia moral, é legítima uma lei diferente da posição da Igreja?

Eu diria algo intermédio: nem tudo o que é ético deve passar no condensado de uma formulação jurídica. A finalidade desta, e do Estado que faz leis, está em sintonia, mas não coincide com a finalidade da Igreja. Isto vale para as duas partes: o Estado não pode ser fonte de moralidade, a Igreja não pode ser fonte de legislação civil. Se não, teríamos o Estado ético, que leva às ditaduras, ou a teocracia, que também sabemos a que conduz.

O Estado tem a finalidade da paz social, a Igreja tem a finalidade da salvação. Numa situação de pluralismo de visões religiosas, culturais e éticas, o Estado deve encontrar, de preferência com sabedoria, a visão que, na feitura das leis, tenha em conta essa pluralidade.

Diria o mesmo sobre as uniões de pessoas do mesmo sexo ou da investigação genética?

No caso das uniões de pessoas do mesmo sexo, há vivências dramáticas. Tem de se ter em conta a história de discriminações. Uma cultura cujo único modelo é o matrimónio heterossexual exclui do gozo de outros direitos pessoas que poderiam ser incluídas, mesmo sem colocar em perigo o instituto do matrimónio.

Isto vale também para a pesquisa genética ou as células estaminais: deve ter-se em consideração as expectativas da comunidade e as situações dolorosas ou as expectativas de terapia que, de outro modo, não seriam tratadas.

Devemos ter o critério geral de uma maior atenção - da ética, da teologia, do magistério, da comunidade - perante as pessoas em estado de debilidade e fragilidade. Isto é típico da mensagem cristã. A história que a caridade cristã escreveu passa hoje por curvar-se [perante as pessoas] de forma não ideológica nem arrogante, mas de escuta real.

Faz falta essa atitude?

Penso que sim, não tanto na Igreja. A cultura em geral sofre desta falta, perante as situações dolorosas. Penso em governos que estão contra a imigração de cidadãos que provêm de outras partes. Há tantos sinais... Gostaria que a Igreja tivesse um grito profético e se colocasse ao lado dos que vivem verdadeiramente o drama e querem que apareça uma palavra clara e pública.

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