Resistentes, românticos e trágicos

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Zé Pedro Moura e João Peste Dora Nogueira

Os Pop Dell'Arte regressam aos álbuns com "Contra Mundum" - quinze anos depois do magistral "Sex Symbol", oito anos depois do belo EP "So Goodnight". O disco vai de Kurt Weill à new-wave decomposta, a conversa atravessa vinte e muitos anos de mitos e equívocos. Os Pop Dell'Arte são resistentes, românticos e trágicos

E ponto final: não há muitas bandas assim.

Quem mais chegou, viu, escandalizou, fez um disco, assistiu à criação ao seu redor de uma tonelada de mitos, e em vez de capitalizar resolveu não só dar um tiro no pé como cravar pregos nas mãos e nos pés, lançando o ocasional single perfeito para o opróbrio, passando anos sem dar concertos e regressando a cada dez ou mais anos para um álbum?

Os Pop Dell'Arte não são, decerto, a primeira banda a ser atravessada por histórias de drogas, falta de dinheiro, glória e queda, deserções, zangas e regressos. Mas os Pop Dell'Arte certamente uma das poucas bandas que renascem quando já ninguém acredita e voltam a baralhar o que quer que pensássemos delas. E assim sendo, o que fazem eles quando, quinze anos depois de "Sex Symbol", o extraordinário terceiro disco de originais e último a ser lançado no mercado, regressam com treze canções novas? Chamam ao disco "Contra Mundum".

No mínimo pode dizer-se que isto não é a mais sensata arte de sedução da classe média.

"A ironia do título é total", diz João Peste, o eterno líder, na sua casa no centro de Lisboa - Peste deixou há dois anos a sua Campo de Ourique nativa, onde a história da banda começou.

Surge vestido de forma discreta, com ar frágil, de discurso calmo mas tremendamente sincero. Sincero ao ponto de o ouvirmos dizer que naquele título "pode haver um por cento de amargura - ou até mais".

Palavra curiosa, esta: amargura. Nas entradas futuras das enciclopédias da música portuguesa, Peste surgirá inevitavelmente como um iconoclasta, um provocador, talvez mesmo um agitador com o seu quê de exibicionista e o mérito de abordar questões como a homossexualidade, a marginalidade ou as drogas de forma excessiva mas comovente.

E no entanto, o provocador é um homem extraordinariamente honesto (isto sempre desconfiámos). "Eu assumo que tenho alguma amargura - e sempre tive. Até acho que agora tenho menos. Agora tenho uma filosofia de vida mais calma. Tinha uma visão um bocado pessimista das coisas em novo, o que alimentava esse lado amargo".

É um homem extremamente educado, de voz doce, capaz de dar entrevistas de cinco horas que acabam com entrevistado e entrevistador a ouvir o lado B de um single de George Harrison, "My Sweet Lord", chamado "Isn't it a pitty", a canção mais melosa que se pode imaginar.

(Tem também uma bela colecção de música clássica e de DVDs, que vão do cinema mais radical a séries de TV. E a determinado momento da conversa cita a série "Boston Legal" com comovente determinação. Contamos isto só para que o real ainda tenha algum valor sobre os mitos.)

Com isto não se quer dizer que não tenha sido (ou seja) um tremendo provocador. Quer dizer que essa imagem é redutora. Aliás, quase todas as imagens à volta dos Pop Dell'Arte são redutoras.

Mitos

"A imagem dos Pop Dell'Arte enquanto vanguardistas é distorcida", diz Zé Pedro Moura, membro do grupo desde o início - já não esteve em "Ready Made", o segundo disco, de 1991, e voltou uns anos mais tarde depois de uma passagem pelos Mão Morta. "O 'Mai 86' é absolutamente pop", atira, em forma de demonstração.

"Mai 86" é uma daquelas muitas canções extraordinárias dos Pop Dell'Arte que só saíram em single ou em EP e, portanto, nunca chegaram a um público mais alargado. Até nisso eles têm uma forma própria de - chamemos-lhe - trabalhar: a obra é escassa e fragmentária, a formação ao longo dos anos inclui uma infindável lista de nomes.

É por coisas destas - mais os sexos erectos nos libretos dos discos - que há mitos à volta do grupo. Mas do ponto de vista deles a coisa é mais simples.

"A nossa discografia ser errática", diz Zé Pedro, fazendo uma pausa, "isso tem graça. A graça da pop é essa: ser livre. Os discos vão saindo quando faz sentido sair. Não compomos para cumprir calendário". E exemplifica mencionando o caso de "Querelle" que "só faz sentido naquele maxi pela própria essência da canção".

Não é caso único: "Esborre" e "Sonhos pop" (single pop perfeito) foram lançados como singles em Novembro de 1987, um mês depois do máxi de "Querelle" e um mês antes de "Free Pop" - ou seja, de uma penada os Pop Dell'Arte atiraram fora do disco de estreia quatro enormes canções.

Porquê? Porque "Esborre" e "Sonhos Pop" "tinham de ser um sete polegadas em vez de saírem em LP", diz Peste. Tinham. E pronto.

Em 1991 resolveram editar essas canções dispersas em "Arriba! Avanti!". É lá que se pode ouvir um Peste "crooner" a cantar, em "O amor é um gajo estranho", "O amor nunca me mente quando me venho na sua boca".

Gente a vir-se na boca de outro, aquela forma de cantar, se isto não era facilmente comestível para muitos lisboetas, para os outros eram tremendamente violento.

Peste rejeita de imediato o epíteto violento, mas contextualizamos: imaginemos um rapaz sufocado nas sebes altas e nos canteiros aparados da província, com 12 anos à data da edição de "Free Pop", a mostrar cassetes aos amigos.

Prince?
Ok.

Public Enemy?
Coisas de pretos.

Mão Morta?
Ok, grande rockalhada.

Pop Dell'Arte?
Mas que paneleirada é esta? Isto é música?

Peste pareceu achar graça ao facto de numa terreola perdida do país os miúdos acharem os Mão Morta mais acessíveis que os Pop Dell'Arte, mas interessa-lhe demonstrar que o mito que diz que a errância discográfica se deve a preguiça, drogas e sabe Deus que mais é mentira.

"Fizemos o primeiro disco e um single em pouquíssimo tempo, com a morte do meu pai pelo meio".

O processo, confessa, deixou-o queimado e "ainda hoje" quando ouve o disco pensa "que algumas coisas teriam ficado melhor com mais algum tempo de trabalho". Nesse caso não tem dúvidas: "A pressa prejudicou".
As razões para a errância da obra foram mais prosaicas. Exemplifica Peste que "muitas vezes não houve pura e simplesmente dinheiro para fazer um LP". O "So Goodnight" [EP de 2002] era para ser um LP mas não havia dinheiro".

Mesmo a imagem que sempre imaginámos que eles tinham de si próprios merece reparos.

Zé Pedro Moura: "A mesma mitificação que dizias sentir em relação aos Pop Dell'Arte, nós sentíamos em relação a Nova Iorque e a Londres. E depois, às tantas, eram pessoas como nós".

Mas, retorque Peste de forma cândida, o seu sonho era tão só "pisar o palco do Rock Rendez-Vous".

Nem os rótulos que se lhes foram sendo colados parecem ser do seu agrado. Peste não gosta "da expressão 'experimental'": "Não andamos aqui a experimentar a ver o que é que sai dali. Sabíamos melhor o que é que queríamos do que as pessoas pensam".

O termo "vanguarda" - esqueçam: "É pretensioso". E com Peste a renegar uma catalogação por ser pretensiosa podem também esquecer o mito de João Peste enquanto "snob-arty".

"Talvez o termo 'alternativo' combine connosco, porque tentamos criar alternativas, sim".

Ainda assim, acrescenta, quando começou a ouvir música "no final dos anos 60" na altura "não havia essas divisões". "No top 10 inglês havia muita coisa radical. Mais tarde é que se criaram essas divisões".

Durante todos estes anos a banda foi acabando e recomeçando, sempre com novos membros. Uma das razões apontadas para as demoras na criação é bastante proverbial: segundo Zé Pedro Moura "cada um de nós faz outras coisas. Para conseguir reunir toda a gente é preciso muito esforço de cruzar horários". (E lá se vai mais um mito.)

Algumas das saídas foram particularmente acrimoniosas, mas Peste garante nunca ter demitido ninguém. "Quando eu decidia voltar a montar os Pop Dell'Arte ligava a quem estava disponível e quem não estava ficava de fora", diz.

Não raras vezes pareceu que poderia haver um revivalismo Pop Dell'Arte - o que ocorreu em parte há dois anos aquando da saída de "Poplastik", colectânea que reunia três novos temas. Mas nunca houve verdadeira explosão. Peste: "Houve vários momentos certos para a banda. Não sei se este é um desses. Pessoalmente já estou a pensar no próximo disco".
Pelo meio ficou sempre a impressão de que o grupo nunca se tinha cumprido totalmente: deixou monumentos, mas não poderia ter deixado mais?

"Quando chegas ao ponto em que te sentes cumprido, é altura de fechar a loja", atira Zé Pedro Moura. "As coisas fazem-se fazendo. Dizer: 'Vou fazer isto e acabou' é muito limitado". Complementa o pensamento com uma frase que é fundamental para perceber os Pop Dell'Arte actuais: "Se racionalizares a importância do que já fizeste, não fazes nada. É um peso demasiado grande".

Essa racionalização foi feita por Luís San Payo, um dos músicos que durou mais tempo na banda - "um dos músicos mais criativos com que tive a oportunidade de trabalhar", faz Peste questão de dizer.

San Payo "não acreditava que os Pop Dell'Arte pudessem fazer um disco novo ao nível dos antigos", conta Peste. "Para ele devíamos tocar os temas antigos o melhor possível e preservar o património. E eu estava a borrifar-me para o património. O importante era que os Pop Dell'Arte fizessem um disco novo".

Por isso San Payo saiu - nem seriam os Pop Dell'Arte se não houvesse deserções. "Ele tinha um peso muito grande dentro da banda", diz Zé Pedro Moura. "A maneira de trabalhar teve de se alterar".

Prisioneiros da liberdade

Os trabalhos para "Contra Mundum" começaram em 2007, mas as gravações só chegaram em 2008.

Sendo a banda o que é, houve problemas: "Fiquei doente, no hospital, com duas vértebras fracturadas", conta Peste. "Demorei quatro meses a recuperar. Não dava para gravar a voz".

Duas canções antigas foram repescadas para o disco: "Eastern Streets" era um tema de uma das primeiras maquetes, "logo de 1985", diz Zé Pedro Moura. Da autoria de Ondina, que há muito deixou a banda e agora vive em Inglaterra.

Outro tema antigo é "La nostra feroche volontà d'amore", de 2002, canção que a banda "insistiu muito" que Peste gravasse. "Eu achava que podia ficar para outro disco. Pensava que não ia ficar grande coisa. Afinal, quando gravei, ficou grande coisa". (Peste acrescenta que, "correndo o risco de soar arrogante", acha que "este disco também é um marco".)

Curiosa esta ideia de pensar que uma canção pode ficar para outro disco, numa banda que grava quando o cometa Halley passa. Mas fiquem sabendo que ainda há mais canções já acabadas na gaveta.

Isto levanta um pouco um véu acerca do "modus operandi" do grupo. Zé Pedro Moura: "O João pode estar muito empenhado numa música e eu não acreditar até ver. E depois há frases, como aquela 'La nostra feroche volontà d'amore' que me deixam deslumbrado".

Trinta anos depois do começo da amizade, Peste ainda é capaz de deixar os amigos de boca aberta com a sua capacidade de, nas palavras de Zé Pedro Moura, criar "frases simples e fortes" ou aparecer num ensaio com uma melodia toda feita na cabeça. Mas isso não lhe é suficiente: "Acho que ainda não fiz suficientes frases emblemáticas. Gostava de ter mais".

O que, vinte e três aos depois do início, João Peste ainda não tem é "uma vida organizada no sentido de um emprego de oito horas", mas "resistir é vencer": "Acho que somos desde o início resistentes. Mas também românticos e trágicos. Devia pensar 'Cada dia que passa é menos um dia'", vai dizendo, "mas agora penso o contrário: 'Cada dia que passa há mais dias para fazer o que quero fazer".

E no fim, revendo a estranha carreira da sua banda e tentando adivinhar o que aí virá e porque raio é sempre tudo tão complicado, atira uma frase de fazer inveja a um Bill Callahan num dia particularmente mau: "Somos prisioneiros da nossa liberdade".

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