Empregada doméstica, trabalho invisível

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Lenice quer tudo "legal". O seu visto de residência depende de ter um contrato ENRIC VIVES-RUBIO

Continua a ser uma profissão socialmente desvalorizada. E, muitas vezes, invisível aos olhos da lei e das estatísticas. Em muitos países ser empregada doméstica é quase como não ter profissão. A Organização Internacional do Trabalho publicou agora um relatório que alerta para os problemas de quem vive a trabalhar na casa dos outros. E quer definir critérios mínimos de protecção para estes trabalhadores. Por Raquel Martins

Os dias de Lenice, 43 anos, são uma lufa-lufa. É empregada doméstica em nove casas diferentes, onde ganha 6 euros e meio por hora. Trabalha em Algés, Linda-a-Velha, Carnaxide e Barcarena. A partir das oito da manhã - por vezes a partir das sete -, desdobra-se em transportes e correrias. "É uma ginástica", resume.

Conseguiu um contrato de trabalho com uma "senhora" que lhe paga subsídio de férias e de Natal. Nas outras casas onde faz limpeza, há quem lhe pague tudo isso e há quem não o faça, depende da disponibilidade e da relação de confiança. Desconta todos os meses para a Segurança Social uma taxa reduzida (9,3 por cento) e tem direito a subsídio de doença, mas, se ficar desempregada, não terá direito a nada.

É um trabalho instável, mas, feitas as contas, bem pago. "Tenho um salário razoável. Dá pra tocar a vida e pra ir mandado algum dinheiro pro Brasil", diz com o sotaque a denunciar a nacionalidade brasileira, embora esteja a viver em Portugal há seis anos. E como a "carteira de empregadoras" é extensa, se perder um dos trabalhos o impacto no bolso é menor.

Como Lenice havia, no ano passado, um pouco mais de 134 mil empregadas domésticas em Portugal que fizeram descontos para a Segurança Social pelo menos uma vez. Além destas, há as que não conseguem contrato e são invisíveis aos olhos da lei, do Estado e das estatísticas.

Reduzir ao máximo a informalidade do trabalho doméstico é precisamente um dos objectivos do relatório que está a ser discutido na conferência anual da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a decorrer em Genebra, e que será votado no próximo dia 18 de Junho. Em cima da mesa está um extenso diagnóstico sobre o trabalho doméstico no mundo.

O panorama é pouco animador. Manuela Tomei, responsável pela coordenação do documento, esteve em Lisboa a apresentá-lo aos parceiros sociais e enumera a extensa lista das características do trabalho doméstico. "É uma actividade praticamente invisível, que tem lugar dentro de portas, é percebida como sendo isenta de riscos profissionais e não requer competências específicas. É um trabalho pouco qualificado, informal, não declarado e não registado", diz de uma assentada. Uma consequência de tudo isto é a dificuldade em apurar quantas pessoas trabalham nesta actividade.

"É difícil compilar dados sobre o número de trabalhadores domésticos em todo o mundo. Isso acontece devido à elevada incidência de trabalho doméstico não declarado, à definição de trabalho doméstico e ao facto de muitas estatísticas nacionais incluírem a actividade na categoria do trabalho social e comunitário", lê-se logo nas primeiras páginas do relatório Trabalho decente para os trabalhadores domésticos. Ainda assim, sabe-se que nos países em desenvolvimento representa quatro a dez por cento do emprego total e nos países desenvolvidos entre 1 e 2,5 por cento.

Um "trabalho" de mulheres

Na verdade, diz Manuela Tomei, o trabalho doméstico "não é considerado propriamente um trabalho, mas uma actividade desempenhada maioritariamente por mulheres, que tradicionalmente sempre assumiram essas tarefas". Em muitos países, relata, as empregadas domésticas não são consideradas trabalhadoras e, por conseguinte, não estão cobertas pela legislação laboral, nem sequer têm protecção social.

Outra das características do trabalho doméstico é a elevada segmentação de género. Motorista, jardineiro, segurança ou mordomo são profissões geralmente executadas pelos homens, "percebidas como tendo mais valor face às restantes profissões dentro da categoria do trabalho doméstico executadas por mulheres".

O resultado, frisa a responsável pelo Departamento de Trabalho da OIT, é que os homens acabam por receber salários mais elevados.

Empregada precisa-se

Uma das razões pelas quais a OIT decidiu avançar com esta tentativa de criar critérios mínimos de protecção para os trabalhadores domésticos - o que deverá acontecer no próximo ano com a adopção de uma recomendação ou de uma convenção - tem a ver com a elevada procura desta actividade, fruto da feminização do mercado de trabalho nos países industrializados, mas também nas economias emergentes como a China, a Índia ou o Brasil.

"O facto de as famílias de classe média precisarem cada vez mais de dois salários para manterem o seu nível de vida e o enfraquecimento do Estado social, faz com que as empregadas domésticas assumam um papel cada vez mais importante na conciliação entre vida profissional e familiar", justifica Manuela Tomei.

O relatório alerta ainda para o facto de haver uma relação directa entre as políticas de protecção à família e a dimensão do trabalho doméstico. "Pagar a uma empregada que trate da casa, das crianças e dos mais velhos é uma decisão fortemente influenciada pela disponibilidade ou não de infra-estruturas de apoio às famílias", sublinha-se no documento.

Um estudo recente em França, país que, ainda assim, tem políticas estruturadas de apoio à família, dava conta de empregadas de limpeza que chegavam a ter 15 empregadores diferentes, sem terem mãos a medir para responderem a tanta procura.

À mercê dos patrões

As características do trabalho doméstico variam de país para país, mas muitos dos problemas detectados são globais. "Como é um trabalho que acontece em casa é muito difícil de fiscalizar e, por isso, a vulnerabilidade aos abusos é muito elevada e um problema global", lembra a responsável da OIT. Outro dos riscos é a grande proximidade com o empregador. "Criam-se laços e as pessoas usam esses laços de uma forma nem sempre lícita", realça.

A estrutura do mercado de trabalho, o grau de desenvolvimento socioeconómico, factores religiosos e culturais são também determinantes. E, mesmo nos países que têm legislação direccionada para este tipo de trabalho, "as condições de trabalho dependem da benevolência do empregador".

Manuela Tomei dá exemplos das situações mais extremas. Nos países do Golfo e no Médio Oriente, a quase totalidade das empregadas domésticas vêm do Sri Lanka, Bangladesh ou Filipinas, porque as mulheres nacionais não podem trabalhar e morar com homens. E a forma como estas mulheres entram no país faz com que os abusos possam ser mais frequentes: "Muitas vezes o visto de residência é vinculado a um empregador específico e ela não pode mudar de empregador. Além disso o empregador tem a obrigação de tutelar a integridade da trabalhadora, o que, muitas vezes, significa que a empregada não pode sair de casa."

Em África o problema é o trabalho infantil. Em alguns países, as crianças são enviadas pelos pais para a casa de familiares, na cidade, com a esperança de que possam ir à escola, mas acabam a trabalhar "longuíssimas horas em troca de comida".

Na Europa, as dificuldades são outras. As empregadas trabalham em part time, têm múltiplos empregadores, o que dificulta a definição de patamares mínimos de protecção. E há casos em que os benefícios sociais são inferiores aos dos restantes trabalhadores.

Encontrar uma solução para todos estes problemas é a base do desafio que a OIT pretende levar por diante: criar regras internacionais que estabeleçam remunerações mínimas, horários, limites aos pagamentos em espécie e criem protecção social para uma profissão invisível e socialmente desvalorizada.

A OIT realça as respostas já encontradas por países como a França ou a Suíça, que tentaram empurrar esta actividade para a economia formal, criando um cheque-service que permite controlar os tempos de trabalho e obriga os empregadores a fazer descontos. Uma solução que, diz Tomei, "permitiu melhorar a protecção" e detectar situações de imigração ilegal.

Em Portugal, a legislação prevê a existência de um contrato específico para o serviço doméstico. Lenice, por exemplo, quer tudo "legal" para não ter problemas. Até porque o seu visto de residência, que tantos meses lhe levou a conseguir, depende desse contrato.

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