Henri Cartier-Bresson: o espelho do mundo

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Henri Cartier-Bresson, um dos pais da fotografia moderna, como já não se via há três décadas em solo americano: retrospectiva no MoMA, em Nova Iorque, até ao final do mês. Mais do que uma obra, é todo um século que está em revista

Nascido em 1908, desaparecido 96 anos mais tarde, Henri Cartier-Bresson foi das poucas pessoas que puderam testemunhar a passagem de um dos séculos mais importantes da História. Mas não fosse ele um dos chamados "pais" da fotografia moderna e talvez esse facto tivesse sido pouco relevante. "Henri Cartier-Bresson: The Modern Century", a retrospectiva que o Museum of Modern Art (MoMA), de Nova Iorque, acolhe até ao próximo dia 28, omostra justamente como os dois, Cartier-Bresson e o século XX, caminharam lado a lado.

Vindo de uma família burguesa parisiense cuja fortuna assentara numa fábrica têxtil, Henri Cartier-Bresson mostrou cedo o seu desconforto relativamente aos modos de vida, ainda que seguros, do seu círculo de sangue mais próximo. Recusando um futuro numa empresa familiar, encontraria um estímulo nos circuitos intelectuais de Paris, onde travou conhecimento com as ambições artísticas e políticas das sensibilidades intelectuais da cidade. Estamos nos anos 20 e 30 da Europa pré-guerra: vive-se um ambiente fervilhante na arte europeia, assim como tempos revolucionários na sua sociedade industrial.

É então que se aproxima dos surrealistas. Conhece Max Ernst e Julien Levy (que viria a mostrar o seu trabalho mais tarde), entre outros que, como acontecerá com grande parte dos seus encontros na vida, permanecerão sempre seus amigos (e de quem mais tarde fará retratos). As origens do surrealismo viriam a dar-lhe o estímulo que procurava fora do seu meio: uma fuga da moral burguesa e um refúgio na vanguarda. Sendo esse, antes de mais, um movimento baseado no amor, Cartier-Bresson aprendeu a abrir a sua mente às sensibilidades emocionais e intelectuais de um outro mundo. As suas origens encontravam-se para além de uma cidade - um mundo de novas formas cubistas cuja inspiração caía na arte africana, que se revia na exaltação romântica de Rimbaud, nas possibilidades narrativas de Joyce, na justiça e no idealismo de Hegel. Será a influência deste grupo que o fará ver a paridade entre ideias e culturas, a existência de um mundo sem hegemonias explícitas.

Peter Galassi, curador da exposição agora patente no MoMA - a primeira retrospectiva do fotógrafo em solo americano em três décadas, numa altura em que merece, depois da sua morte em 2004, um novo tratamento e uma reapreciação institucional - sublinha a sensibilidade do fotógrafo: "Tinha uma inteligência muito grande e precoce. Tinha uma cultura muito rica, uma bagagem que levava com ele quando se escapava para tirar fotografias pelo mundo. Era um rebelde, mas ao mesmo tempo não deixou de ser um 'grande burguês'. No entanto, as suas fotografias eram óptimas, porque em qualquer situação em que se encontrasse, em qualquer patamar da escala social, conseguia adaptar-se a ela e percebê-la. E isso reflecte-se muito no seu trabalho".

O momento decisivo

Com a Europa ainda (mas cada vez menos) em paz, Cartier-Bresson explora as suas motivações criativas, sem sucesso, na pintura. Será na fotografia que virá a formar o seu caminho: uma estrada onde travará conhecimento com as civilizações e as culturas que rodeiam a europeia, então ainda o centro do planeta.

Numa primeira fase, vira-se para o cenário da rua e para as suas personagens, um palco que irá definir as suas primeiras fotografias conhecidas: o momento mágico em que o fotógrafo captura o acto de vida e o preserva na possibilidade fotográfica de parar o tempo. É o seu "momento decisivo", aquele que define algumas das suas imagens mais emblemáticas, mostrando o cenário essencial e despido do tempo. Daqui sairá a fotografia moderna, a captação do movimento da vida como tema fotográfico. Cartier-Bresson acrescentar-lhe-ia o seu instinto gráfico: um corpo que nunca irá tocar no chão alagado das traseiras da estação de Saint-Lazare, ou jovens crianças que se multiplicam geometricamente nas janelas e nos destroços de uma paisagem que parece não existir.

Em 1939, a Europa entra em guerra e o fotógrafo é chamado. Com a rendição francesa, torna-se prisioneiro de guerra, condição da qual conseguirá sair após fugir do seu campo de detenção. Será depois do fim do conflito, com um continente devastado e traumatizado, que decide ir ao encontro do mundo. Um outro colega e amigo, Robert Capa, convence-o a enveredar pelo fotojornalismo. Juntos, estão na origem da criação da agência Magnum, que se irá tornar num dos mais fortes espelhos da realidade humana, e Cartier-Bresson, talvez o único fotógrafo do grupo que conseguiu sempre estar entre a função do jornalista e a visão criativa de um artista, fará do mundo uma plataforma para o seu trabalho. A dualidade de espírito entre a fotografia como arte e como profissão acabaria por marcar a sua carreira, criando, segundo Peter Galassi, uma tensão positiva, e abrindo o caminho para a descoberta e a assimilação de outras culturas: "A sua opção pelo fotojornalismo enriqueceu muitíssimo o seu trabalho", afirma o curador. A profissão de fotojornalista, tal como ela se reconfiguraria depois da guerra, era um veículo perfeito para um olhar independente. "É essa a importância da Magnum: permitir aos fotógrafos trabalhar para as publicações sem serem empregados delas. [A agência] dava uma forma ao desejo de Cartier-Bresson de encontrar o mundo e tentar apreendê-lo."

Estudar o mundo

A partir de 1947, Cartier-Bresson deu sequência às suas primeiras viagens de antes da guerra, tornando-se num "funcionário artista" em permanente deslocação. A fotografia era o seu modo de viagem e a viagem era o seu modo de vida; como objecto, interessava-lhe o Homem e a sua intervenção na paisagem. Uma atitude original dentro de um mundo ainda colonial e assente em supremacias civilizacionais, caracterizada pelo estudo atempado da realidade e pelo respeito por quem é fotografado. No fundo, a aceitação precoce de um interesse na verdade multicultural da humanidade. Galassi fala desta sensibilidade específica do fotógrafo: "O mais extraordinário no trabalho de Cartier-Bresson é toda a sua amplitude geográfica e histórica. É o único fotógrafo em que isso é verdade: vemos o mundo tal como era antes da revolução industrial, e que ele adorava tanto". O comissário evoca, como exemplo, as fotografias tiradas em Portugal (na Nazaré, em 1955): "A fotografia dos pescadores portugueses com as redes de pesca poderia ter sido feita há centenas de anos atrás. Esse mundo não tinha realmente desaparecido, apesar de o trabalho dele também entrar pelo nosso mundo da tecnologia e do mercado. É essa a amplitude extraordinária do seu trabalho."

O interesse de Cartier-Bresson pelas diferentes civilizações, assim como o desejo de assimilação dos seus diferentes modos de vida, resultam num retrato honesto dos povos, despojado de dramatização ou de artifícios. Tal como os seus primeiros trabalhos, as imagens do pós-guerra são marcadas por um respeito igualitário pelos seus intervenientes. Para Cartier-Bresson, nenhum assunto e nenhuma pessoa estava abaixo do seu interesse. "Temos aqui um europeu branco de uma classe confortável que vai dar uma volta ao mundo. Podemos dizer que isso é a personificação de uma atitude colonial, mas podemos também dizer que é o desafio de ver o mundo como um conjunto de culturas muito diferentes, e de as apreciar, assimilar e respeitar", nota o comissário.

O instinto do fotógrafo levou-o ainda a estar presente em vários momentos decisivos desses outros mundos, nomeadamente no funeral de Gandhi na Índia, cujas imagens foram as únicas que o Ocidente recebeu. Nesses anos, Cartier-Bresson explorou ainda vários países da Ásia: o Paquistão, o Sri Lanka, a Indonésia, a Singapura e a China (a sua estadia de quatros meses em 1958 resultou no trabalho "The Great Leap Forward", o retrato da industrialização chinesa de Mao, presente na exposição). Tornou-se igualmente no primeiro ocidental a fazer um retrato fotográfico do povo da União Soviética após a morte de Estaline em 1953, abrindo o olhar da Europa para um mundo que chegava apenas como mito aos ouvidos do resto do continente. Um retrato que não se diferenciava, afinal, assim tanto da imagem daqueles que o viam do outro lado. Cartier-Bresson iria contrapor essas imagens com várias outras de muitas viagens aos Estados Unidos, o país estrangeiro que mais visitou, estabelecendo, assim, um verdadeiro retrato comparativo do empenho físico e laboral do mundo comunista e da ordem corporativa do Ocidente capitalista: o mundo enquanto ele acontecia.

O elogio da diferença

Mas se Cartier-Bresson funcionou como os olhos do Ocidente para tantas partes inacessíveis do planeta, o que dizer hoje da sua relevância numa época em que as distâncias deixam de existir?

"Claro que, agora, tudo mudou", diz Paul Galassi. "Não apenas a maneira de viajar, mas aquilo que ele sentia que era a força da modernidade, a tecnologia e o mundo do consumismo. Nesse sentido, o mundo está muito diferente, mais nivelado, e, se Henri Cartier-Bresson tivesse surgido no mundo actual, talvez seguisse outro caminho". O fotógrafo mantinha uma preocupação de tolerância nas suas imagens - a própria luz das fotografias dá igual relevância aos seus elementos, mantendo uma coesão e uma harmonia que respeitam uma superfície uniforme.

Por outro lado, o estudo cultural que o seu trabalho oferece sobressai ainda mais nos dias de hoje. Galassi continua: "Quanto mais as superfícies de duas culturas se parecem uma com a outra, maiores são as diferenças culturais que as caracterizam por baixo delas. Henri Cartier-Bresson estava interessado em explorar essas diferenças, em conhecê-las e inscrevê-las no seu trabalho. A oportunidade que a fotografia tem de se inscrever e apreender um mundo diferente ainda existe. Consegue imaginar o quão divertido seria para ele fotografar-nos com todos os nossos pequenos aparelhos? Podia-se fazer um livro só sobre isso."

Se a distância entre culturas não se extingue, Cartier-Bresson ter-nos-á ajudado a vê-la melhor. No entanto, é necessário um tempo de assimilação intrínseco ao método de captação do momento fotográfico. Algo que também hoje é relevante, numa época em que se pede uma imagem urgente e imediata, sem pensamento. "O desafio ainda existe", diz Galassi. "É verdade que estamos enterrados em imagens. Mas ainda temos o controlo sobre o que fazemos com elas. As fotografias podem ser parte de uma maneira de apreender e perceber o mundo."

A gestão de uma herança

"Henri Cartier-Bresson: The Modern Century" questiona ainda o excesso de controlo editorial que as imagens fotográficas sofrem desde a segunda metade do século XX, indo ao encontro da dificuldade que o fotógrafo sentiu em relação às várias intervenções que as suas fotografias sofreram, algumas das quais não sabemos sequer se correspondem, de facto, à visão original que o autor tinha delas. A turbulência desses processos, assim como o desejo impulsivo de captar o próximo momento de vida, levaram-no a criar um sentimento de indiferença em relação ao modo como eram expostas as suas imagens nas plataformas de comunicação da altura e a concluir que o essencial da fotografia estava antes e no exacto momento em que a captava, sem artifícios posteriores.

Galassi nota que Cartier-Bresson se encontrava "num extremo" do modo como os fotógrafos tentavam gerir a recepção do seu trabalho. A herança que instituições como o MoMa têm de gerir torna-se, deste modo, na verdadeira pós-produção das suas imagens. "Ele deu-nos a responsabilidade de montar o seu trabalho. As suas imagens são tão ricas que irão surgir ao longo do tempo através de maneiras de ver diferentes." Diferenças que Cartier-Bresson nos mostrou através de um olhar respeitoso da cultura e da vida em todas as suas formas e feitios, e de valores universais como o tempo, a tolerância e a compreensão da matéria humana. De todas as épocas, esta é aquela em que podemos escolher devolver a ética desses valores às imagens.

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