Um desejo de tempo

Pintura de João Jacinto na Fernando Santos, Porto.

Em 2005, a Kunsthaus Baselland, em Basileia, na Suíça, acolheu a exposição "Space invaders: a discussion about painting, space ant its hybrids." Comissariada por Sabine Schaschl-Cooper, a mostra pretendia testemunhar um suposto renascimento da pintura, que curiosamente surgia, desta vez, no pós-11 de Setembro - uma sobrevida para a qual haverá diversas explicações, sendo porém relevante pensar-se se essa situação não advirá de uma contínua reinvenção do meio, muitas vezes decorrente de um qualquer efeito pós-traumático: do expressionismo abstracto após a Segunda Guerra Mundial ao "efeito Tuymans", designação cunhada em 2004 por Jordan Kantor, em artigo publicado na "Artforum".As recorrentes mortes e ressurreições da pintura provocaram, provocam ainda, uma cadeia infinita de equívocos, distraindo muitas vezes das questões essenciais próprias a um meio, que, sublinhe-se uma vez mais, não cessa de expandir as suas condições de existência no mundo, um processo em que assume uma particular relevância a experiência adquirida na prática do ateliê. É esse lugar onde a obra ganha consistência, espessura e densidade que faz com que a sua aparição nos conduza sempre a uma origem relacionável com um aumento da potência de agir: há uma outra vida após o contacto com esse instante em que o desejo se cumpre. A pintura pode ser assim definida como a concretização de um desejo: um desejo de tempo, de um outro tempo em contraponto a este, quotidiano. Um tempo mais lento ou mais veloz. Um tempo que se acumula camada a camada, se expande para as bordas, escorre na direcção do centro da terra, ou se eleva para o céu. Um tempo cheio de cores e de sensações. É uma acumulação de experiências, esse tempo, tal como nos ensina Rainer Maria Rilke numa das páginas mais belas de "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge", onde se pode ler: "Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo bastante), - são experiência."

João Jacinto (Mafra, 1966) propõe uma série de trabalhos em que o tema é a própria pintura, a sua condição de existência no contexto da arte actual. As diversas declinações a que o artista sujeita as suas obras provêm de um mesmo exercício: testar os limites estruturais de uma obra que ora se afasta de um centro para evocar uma paisagem - abstracta, é certo -, ora se aproxima de uma fisicalidade determinada pela acumulação de matérias, ora assume uma vontade de abarcar outros territórios, dirigindo-se, sem medo, ao exterior de si, e aceitando o erro e a justaposição como elementos de composição. As pinturas, por vezes, são viradas do avesso, outras expõem a sua nudez, mas é sobretudo a sua dimensão corpórea, colorida, excessiva, que aqui importa: há uma palavra que parece adequar-se a estes trabalhos, informe.

Onze telas grandes. Nove telas pequenas. "leos sobre tela, datados de 2008 a 2010. E ainda 15 papéis - auto-retratos, casas de pintores mortos e rosas, temas recorrentes na obra do artista. Há qualquer coisa de carne, em algumas obras; noutras sente-se a intimidade da pele. Vê-se também uma permanente corrosão e imaginam-se fungos, líquenes, pequenos acontecimentos minerais e vegetais que se cristalizaram numa acumulação cores: materializações de um tempo que se procura a si próprio nesse espaço de solidão, de abandono, o lugar certo para o acto criativo. Imagens da ruína? Da decomposição que sucede à morte? Há nestes trabalhos um desafio às certezas, aos compromissos mediados, aos discursos eficazes. Por vezes, eles parecem falhar, mas, de facto, estão absolutamente certos: sem títulos.

Uma informação complementar, que sintetiza a exposição, tal como nos é dada na folha de sala: "Pintura abstracta, sobre tela, sobre papel. João Jacinto pinta no chão e desenha na parede... Pintura a óleo (muitíssimo óleo...), desenhos a carvão e a cinza de charuto...".

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