E se a crise fosse de férias lá fora?

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RUI GAUDÊNCIO

Portugal é o único país onde o Presidente e um ministro discutem destinos de férias com o país à beira da recessão

Podem não acreditar, mas eu esforço-me. Todos os dias. Acordo e digo várias vezes a mim próprio: "eu vivo num país normal"; "eu vivo num país normal"; "eu vivo num país normal". Há dias em que subo o tom e digo quase hiperbolicamente a mim próprio: "eu tenho muita sorte em viver num país normal" ou mesmo "eu sou muito feliz por viver num país normal". Acreditem, é um grande esforço.

Felizmente, não estou sozinho. Há outras pessoas em Portugal que fazem um grande esforço. O Presidente da República, por exemplo. Se me for permitida a imodéstia da comparação, claro. O Presidente da República faz um grande esforço. Esforça-se todos os dias em ser Presidente da República. Uns dias consegue, outros não. É humano. Tal como eu, talvez esteja a precisar de férias. Se me for permitida a imodéstia da comparação.

No outro dia, Cavaco Silva foi a Albufeira convidar os portugueses "a passar férias cá dentro", parafraseando o conhecido slogan do turismo português - "Vá para fora cá dentro". Caiu o Carmo e a Trindade. Cá dentro e lá fora. Porque a resposta que transformou esta frase anódina do Presidente numa minicrise política - a minicrise política está para a crise política como as miniférias estão para as férias grandes - chegou da longínqua Xangai pela voz do ministro da Economia, Vieira da Silva.

Portugal é portanto o único país onde é possível abrir uma discussão política sobre destinos de férias em plena crise económica global. Quem quer saber do desemprego, do fantasma da recessão, da subida dos impostos? Não, em vez disso, há um debate sobre as férias ao mais alto nível. Como se a própria crise global tivesse ido de férias - lá fora, de preferência.

A frase de Cavaco Silva não merecia tanto, diga-se de passagem. É mais uma daquelas trivialidades ocas que caracterizam o seu discurso. Tem aquele fundo antiquado, poupadinho, que o distingue. Mas, de qualquer maneira, mal não fez. As reacções que o Presidente despertou foram, no entanto, do mais díspar - quando o singular é uma declaração tão baça como esta despertar mais do que um bocejo de aborrecimento. Houve mesmo as pessoas que acharam ofensivo que o Presidente tenha falado em quem passa férias "lá fora" numa altura em que toda a gente está obrigada a apertar o cinto.

Mas o ministro da Economia foi mais longe. E, da distante China, Vieira da Silva veio perguntar o que aconteceria se os presidentes dos outros países desencorajassem os seus compatriotas de ir visitar outros países, como por exemplo Portugal. Por outras palavras, Vieira da Silva viu no discurso de Cavaco um exemplo de proteccionismo turístico, ao qual contrapôs o internacionalismo turístico, a solidariedade dos viajantes de todo o mundo com os países vizinhos.

A violência da argumentação foi tal que logo na imprensa se iniciou a busca hermenêutica dos sinais de uma nova guerra Belém-São Bento. A cooperação estratégica, que já se adivinhava morta e enterrada há meses, aparece agora ameaçada por um conflito de morte entre as low cost e as pousadas de Portugal, o apartamento em Quarteira ou as férias em regime de meia pensão em Benidorm.

Mas o mais aborrecido desta pseudopolémica não é o bem ou o mal fundado do que foi dito ou desdito. É o problema do que não se diz. É o problema da tacanhez do discurso político e da forma como os media o empolam. É pelo que fica por dizer que vale a pena falar desta polémica. Na sua insignificância, ela traduz um pouco a forma como os líderes políticos se sentem aprisionados, ao nível dos discursos e das políticas.

Cavaco não agiu certamente com má intenção e o passado de Vieira da Silva diz-nos que ele não é dado a polémicas gratuitas (talvez por isso as palavras dele tenham sido levadas bastante a sério). Mas os sinais que chegam do mundo são inquietantes. Da China, cuja sociedade e cuja economia afinal não serão tão sólidas quanto se pensa. Da Hungria, por onde o espectro da falência voltou a passar após dois anos de austeridade. Da cimeira do G20 na Coreia do Sul, onde, escreve o Financial Times, os líderes mundiais perceberam os limites do seu poder perante as pressões dos mercados financeiros. De Portugal onde o antigo governador do Banco de Portugal Jacinto Nunes lembra ao PÚBLICO que esta crise é bem pior do que a de 1983-85.

Mas essa realidade está fora do discurso político. E o discurso político está fora da realidade. Num certo sentido, faz sentido que estejam a falar de férias.

Eu vou continuar a esforçar-me. É uma promessa.

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