Louise Bourgeois: Ela desapareceu num silêncio absoluto

Foto
Louise Bourgeois fotografada no seu estúdio de Brooklyn, em 1998, Nova Iorque, em 1998, Corbis

Foi uma das artistas mais relevantes do século XX. Com ela - e com a sua obra de fábulas, pulsões e desejos - atravessamos a história do mundo e, sobretudo, a sua história.

Em 1947, Louise Bourgeois publicou na Gemor Press uma "suite" de nove gravuras - e outros tantos textos - com o título "He disappeared into complete silence", um trabalho considerado por alguns autores, entre os quais a historiadora de arte Rosalind Krauss, como o ponto de partida daquilo que viria a ser o seu trabalho escultórico.

A artista terá projectado para três dimensões os elementos arquitectónicos presentes nas imagens incluídas no livro - os edifícios esculpidos na paisagem, visíveis em algumas localidades africanas, por exemplo, são outra influência formal que se pode detectar nas primeiras esculturas de Bourgeois.

A chegada da artista, em 1938, aos Estados Unidos, é outro dos marcos decisivos de um percurso iniciado anos antes, em Paris. Depois de ter tentado estudar Matemática na Sorbonne, e após ter fugido ao ensino conservador das Belas-Artes, Bourgeois decide ir à procura da "autenticidade" numa série de academias parisienses, como as fundadas pelos pintores Paul-Elie Ranson, Rodolphe Julian ou a dirigida pelo escultor Filippo Colarossi, tendo ainda frequentado La Grande Chaumière, criada pela suíça Martha Stettler. Outros nomes, como os de André Lothe, Roger Bissière e Fernand Léger, encaminham a artista para o território da escultura, na qual ela se irá afirmar decisivamente a partir de meados dos anos 1940.

Mãe-aranha

Nascida a 25 de Dezembro de 1911, em Paris, filha de um casal de restauradores de tapetes, que chegou a dirigir uma galeria no Boulevard Saint-Germain, Louise Bourgeois é a segunda de três irmãos. A artista cedo manifestou um particular talento para o desenho, tendo ajudado os seus pais na criação de motivos para as tapeçarias. Segundo a cronologia feita para a exposição retrospectiva do Museu de Arte Moderna de Paris, em 1995, a mãe de Bourgeois, Joséphine Fauriaux, era uma "mulher equilibrada e racional" e evocava nela "um sentimento de segurança", enquanto o pai, Louis Bourgeois, "à vez imaturo, autoritário e volúvel", lhe fazia experimentar sensações da ordem do passional. A morte da mãe, em 1932, depois de uma longa doença, irá marcar decisivamente o percurso da escultora, que, nos últimos anos de vida, realiza uma série de obras em aço e mármore e com a forma de uma aranha, precisamente intituladas Maman (uma delas para a inauguração do Turbine Hall da Tate Modern, o museu londrino que lhe dedicou a última grande retrospectiva, em 2007-2008, exposição que depois viajaria para Paris, Nova Iorque e Washington).

Em entrevista a Suzanne Pagé e Béatrice Parent, publicada por ocasião da retrospectiva de 1995 (Louise Bourgeois: Sculptures, Environnements, Dessins, 1938-1995), a artista explica a existência de um duplo tema no caso das obras em que representa a aranha: "Desde logo, a aranha como protectora, a nossa protectora contra os mosquitos. [...] A outra metáfora é que a aranha representa a mãe." Bourgeois acrescenta: "A minha mãe era a minha melhor amiga. Ela era inteligente, paciente, tranquilizadora, delicada, trabalhadora, indispensável e, sobretudo, ela era tecelã - como a aranha. Para mim, as aranhas não são aterradoras."

O atelier de tecelagem, a actividade de tecer e o sentimento de protecção oferecido pela memória da mãe atravessam a obra de Louise Bourgeois, que, já nos Estados Unidos, realiza He disappeared into complete silence. A Lynne Cooke, curadora da Dia Art Foundation, em Nova Iorque, e autora de várias publicações sobre mulheres-artistas do século XX, nota que as estruturas, os sujeitos e as temáticas presentes nas peças escultóricas da artista nos reenviam não só para as "para as fábulas, mas também para os contos folclóricos ou de fadas". Para sustentar a sua tese, a historiadora convoca o texto da última gravura da série publicada em 1947, o qual se inicia com a frase: "Era uma vez uma mãe e o seu filho...", um começo que, nas suas palavras, "reenvia, numa tradição muito antiga, para o tempo indiferenciado das origens, enquanto os protagonistas, "a mãe", "o filho", participam de uma espécie de boa vontade deste género de conto." E acrescenta: "A imagem que acompanha a história - de um grande rigor arquitectónico e sem nenhuma personagem - está despida de afecto e resiste à narração."

A resistência à interpretação foi outra atitude constante em Bourgeois. Quando lhe pediam uma explicação acerca de um determinado trabalho, a artista dizia simplesmente: "Se a obra de arte não toca o espectador é porque falhei."

Sempre autobiográfica

Relacionada, primeiro, com os surrealistas e os construtivistas e, mais tarde, com os expressionistas abstractos, a artista conseguiu, contudo, escapar a estas classificações, criando uma obra singular, decididamente autobiográfica: um mundo sem correspondência no território dos outros. Há quem aponte a influência exercida pela arte produzida por esquizofrénicos, valorizada sobretudo por André Breton, central para autores como Max Ernst, André Masson, Antonin Artaud ou Jacques Lacan e que, no caso da escultora, se teria feito sentir sobretudo nos seus desenhos - uma disciplina em que Bourgeois se destaca.

"Se é interessante notar que a obra pré-escultórica de Bourgeois participa nesta exploração das características da arte esquizofrénica, é apenas porque a estrutura dessa arte pode ser vista, finalmente, na sua relação com a experiência do objecto parcial" - um termo trabalhado sobretudo no campo da psicanálise -, escreve Rosalind Krauss no seu ensaio Portrait Of The Artist as Fillette, de 1989. A escultora irá declinar esta fragmentação do "eu" de diversas formas, dando continuidade ao escândalo que foi a apresentação pública, no Salão dos Independentes de 1920, da obra Princess X, de Constantin Brancusi (a peça foi imediatamente retirada da exposição). "A coisa extraordinária acerca da recepção da escultura de Louise Bourgeois, desde o seu aparecimento, no fim dos anos 1940, até à conclusão dos anos 1980, é que era consistentemente descrita enquanto abstracta, abstracta no sentido da lógica formal modernista", sublinha Krauss.

A historiadora contrapõe então uma série de trabalhos onde a noção de objecto parcial (part-object) é visível: o seio em Trani Episode (1971-72); o pénis em Pregnant Woman (1947-49) e Janus in Leather Jacket (1968); o clítoris em Femme Couteau (1969-70); a vagina em Janus Fleuri (1968) ou Torso/Self-Portrait (1965-66 - esta série está representada em Portugal na Colecção Berardo); ou o útero em Le Regard (1966). São obras, continua Krauss, que nos confrontam individualmente, como Fillette (1968), ou em grupos, como Double Negative, peças nas quais "a escolha do meio escultórico - borracha, látex, plástico, gesso, cera, resina, linho - é sistematicamente empurrada para a evocação de órgãos corporais e mesmo o tratamento de materiais tradicionais, como o mármore e o bronze, consegue captar a distensão da carne inchada, a resplandecência do tecido membranoso".

Olhos, mãos, pés, sexos, aranhas, teias, celas, tesoura, corpos histéricos, mulheres vertiginosas, em espiral, em queda, espelhos, antigos armários: fios que tecem uma obra infinita. "O inconsciente é meu amigo", dizia a artista. Que afirmava também: "Não sou aquilo que sou. Sou aquilo que faço com as minhas mãos." Ou ainda: "A minha infância nunca perdeu a sua magia. Nunca perdeu o seu mistério. Nunca perdeu o seu drama."

Simone de Beauvoir chamava-lhe "a boca inútil", mas talvez fosse mais justo evocar Ariadne porque ela nos ensina, tal como Bourgeois, o caminho de volta a esse tempo antigo, habitado pela fábula. A sua obra é constituída por pulsões, desejos. E agora desapareceu num silêncio absoluto.

Resta contar a história, tal como nos é narrada no texto que acompanha a última gravura de He disappeared into complete silence:

"Era uma vez uma mãe de um filho. Ela amava-o com completa devoção.

E ela protegia-o porque sabia quão triste e cruel é o mundo.

Ele era sossegado por natureza e bastante inteligente, mas não estava interessado em ser amado ou protegido, porque estava interessado noutra coisa.

Consequentemente, numa idade precoce, ele bateu com a porta e nunca mais voltou.

Mais tarde ela morreu, mas ele nunca soube."

Sugerir correcção
Comentar