A ópera dos fantasmas

Ao mesmo tempo glorioso melodrama clássico e épico de câmara, cinema emocional e popular e ensaio fílmico meta-textual, "Vencer" é uma ópera austera e arrebatada povoada por fantasmas

Parece uma daquelas histórias que fazem chorar as pedrinhas da calçada: a mulher que se apaixona perdidamente, que dá tudo ao homem que ama para nada receber em troca, para dar por si afastada para sempre da sua vista, negada, renegada, deserdada. Só que esta história de fazer chorar as pedrinhas da calçada é verdadeira: Ida Dalser existiu mesmo, abdicou de tudo em nome do homem que amava, deu-lhe tudo e dele nada recebeu a não ser um bilhete só de ida para o asilo psiquiátrico onde, anos mais tarde, o filho do casal foi também parar. Aconteceu na Itália da primeira metade do século XX, Ida Dalser batalhou até ao fim para que acreditassem nela. O homem a quem ela se entregou chamava-se Benito Mussolini. Quando ela o conheceu não passava de um sindicalista carismático e inflamado, quando ela morreu era o chefe de estado italiano, um dos líderes totalitaristas da Europa dos anos 1940, um homem que passou o seu governo a negar que Ida Dalser alguma vez tivesse sido sua esposa.

Não é, evidentemente, de Ida Dalser apenas que Marco Bellocchio está a falar; é da Itália toda, a Itália que se deixou embarcar na canção do bandido que Mussolini lhes cantou, a Itália que tudo lhe deu para dar por si sem nada, prisioneira de um regime bizantino, quase Orwelliano (embora, é verdade, Orwell só tenha publicado "1984" em 1949...), onde bastava um estalar de dedos para a verdade ser apagada para sempre. Bellocchio desenha Mussolini como um pequeno crápula ambicioso, insensível, venal, concentrado em atingir o seu objectivo por quaisquer meios. Ao seu lado, Ida é uma figura trágica, uma mulher arrebatada por uma paixão ardente que transcende as leis da razão, e que a leva a insistir até ao fim, contra ventos e marés, contra a "história oficial", que só o coração sabe a verdade.

Giovanna Mezzogiorno, fogosa, violenta, avassaladora, recorda Anna Magnani, Vivian Leigh, Bette Davis, remete "Vencer" directamente para os grandes melodramas femininos da era de ouro da Hollywood e da Cinecittà, ancora Bellocchio num género preciso, clássico. É tudo aquilo de que o veterano cineasta italiano necessita para propulsionar o filme noutras direcções. Invoca fantasmas que continuam, ainda hoje, assombrar a história italiana, sublinhando o lado operático desta panorâmica transversal sobre um período negro dessa história. Coloca por todo o lado intimações do cinema como arte fulcral deste período, num misto de homenagem e registo (não nos referimos apenas à constante presença de jornais de actualidades, que, num toque de génio, passam a ser a única representação de Mussolini no filme uma vez ele chegado ao poder, mas, por exemplo, à citação do "Miúdo" de Chaplin no hospital de Veneza), evocando um aroma viscontiano de decadência, citando os modernismos futuristas nos múltiplos intertítulos godardianos que vão pontuando a história.

Ao mesmo tempo glorioso melodrama clássico e épico de câmara, cinema emocional e popular e ensaio fílmico meta-textual, "Vencer" é uma ópera austera e arrebatada, histórica e política, social e pessoal, trágica e gloriosa.

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