Uma mão-cheia de fotos que abalou o país

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Fotografias na Playboy. Afastamento da actividade lectiva. Reacções acaloradas. Liberdade e moralidade. Piadas e declarações de intenção. Durante a semana que passou, o país falou de Bruna Real. Mas terá, realmente, debatido o tema da nudez?

A selecção de futebol iniciou o estágio para o Mundial, o Papa esteve em Portugal e, calculismo ou mera coincidência, o Governo lançou por estas datas um duro pacote de austeridade para atacar o défice das contas públicas. O país viveu nos últimos dias um dos seus períodos mais fervilhantes em termos noticiosos. Não era semana para ver brilhar um fait-divers. Ou era? A resposta chegou de Trás-os-Montes.

Bruna Real, 25 anos, professora do 1.º ciclo do ensino básico e responsável pelas actividades extracurriculares no agrupamento de escolas de Torre D. Chama, Mirandela, tornou-se uma das protagonistas da cena noticiosa em Portugal. Bastou uma mão-cheia de fotografias, na revista Playboy portuguesa, para arrastar a opinião pública nacional num turbilhão de notícias e tomadas de posição.

A Câmara Municipal de Mirandela, a sua entidade patronal, decidiu afastá-la do contacto com as crianças, alegando o "alarme social" provocado pelo caso. O país dividiu-se. Atentado às liberdades individuais ou reacção sensata perante as previsíveis cenas dos próximos capítulos? Bruna Real poderia, ou não, continuar a lidar com menores e com os seus encarregados de educação depois de ter aparecido nua numa revista? Portugal é um país medieval ou a professora não mediu bem as consequências da sua decisão?

As perguntas podem ser estas, mas pouco se falou das questões de fundo. As fotos circulam na Internet, a revista esgotou em Mirandela (e imagina-se que em muitos outros pontos do país, depois dos ecos mediáticos), câmaras de televisão instalaram-se à porta do novo emprego de Bruna Real, no arquivo da Biblioteca Municipal. Falou-se muito no caso, toda a gente tem uma opinião. Só a protagonista da história se remeteu ao silêncio, interrompendo-o, apenas, para confirmar que irá concorrer a uma vaga de professora para o próximo ano lectivo.

Ontem, contactada pelo P2, confirmou a intenção de não fazer comentários sobre os acontecimentos recentes, mas afirmou que tem estado atenta a toda a discussão que rodeou o seu caso: "Acho que pode ajudar as pessoas a reflectirem sobre estes assuntos."

Estamos a falar de liberdades individuais. Mas também de bom senso. E de sexo, claro. Explicação mais do que suficiente para que as atenções se concentrassem no caso. Não vale a pena iludir a realidade: este é um assunto que garante visibilidade. Para o provar, cá estão a própria professora, a Playboy, o frenesim na Internet e nos órgãos de comunicação social portugueses.

Vejamos, por exemplo, o site do PÚBLICO. Notícias mais lidas dos últimos sete dias (ranking de sexta-feira à tarde): 1.ª "Hospitais de Braga e S. João no Porto desmentem morte de adepto noticiada pela Benfica TV"; 2.ª "Doente operado ao braço errado no Hospital Particular de Lisboa"; 3.ª "Câmara de Mirandela vai tomar decisão sobre professora que posou para a Playboy"; 4.ª "Câmara suspendeu das actividades lectivas professora que posou nua para a Playboy".

Na lista das mais comentadas, a notícia da suspensão de Bruna Real aparece em 1.º lugar e a da intenção da Câmara de Mirandela de decidir sobre o caso vem na 7.ª posição. Esta última é também a sexta notícia mais enviada por e-mail da semana.

Também noutros países

Pedro Vasconcelos, sociólogo, professor na Universidade de Lisboa, considera que a própria dimensão mediática do caso prejudica a sua análise em profundidade. "A comunicação social tendeu a ver isto a preto e branco: liberdade individual vs. represálias moralistas. Estas componentes até podem estar lá, mas convém não exagerar. Assiste-se a um extremar de posições, quando devia haver sensatez. A avaliação não pode ser excessivamente politizada, ideológica; o caso mediático faz esconder a realidade concreta, de um sítio concreto, num contexto concreto."

Ou seja, cada caso é um caso. Há quem não concorde. Pedro Boucherie Mendes, actual director de canais temáticos da SIC e ex-director da, agora extinta, revista FHM: "Bruna fez muito bem. Foi livre e usou a sua liberdade. Como vive num país medieval, [este caso] vai persegui-la toda a vida. Mas fico contente que haja portugueses ousados e que não temam ser livres."

Tal como Boucherie Mendes, Domingos Amaral, director da GQ, também nunca enfrentou uma situação semelhante na publicação que dirige, até porque, em ambos os casos, a ousadia das produções fotográficas não vai até ao nu integral, como na Playboy. Mas a sua opinião abre espaço para o que considera ser "a ética de apresentação pública", ou seja, a preocupação acrescida com a imagem das pessoas que, no âmbito da sua actividade, lidam com o público.

"Tratando-se de alguém que lida com crianças, espera-se outra ética. Não é de estranhar que haja consequências para ela... É totalmente aceite em Portugal que as mulheres se dispam numa revista, mas a questão é a função pública [de Bruna]. Uma situação destas numa escola privada teria o mesmo desfecho." O director da GQ abre mesmo o leque de casos e recorda que, "noutros países, situações idênticas tiveram desfechos semelhantes".

Liliana Queiroz, Miss Playboy TV de 2005, também partilha a opinião de que a profissão de Bruna Real é um factor incontornável da história. "Não quero parecer uma falsa pudica. Eu própria já me despi para revistas. Mas eu sou manequim, trabalho com o corpo. Esta senhora é professora... Se tivesse um filho, não gostaria que a professora dele fizesse isto, acho que iria perder a autoridade para lidar com a criança."

Seguindo a sugestão de Domingos Amaral, não é preciso pesquisar muito na Internet para encontrar relatos similares: nos EUA, Barbara Schantz, de Springfield, Ohio, foi suspensa sem vencimento, enquanto em Los Angeles Ginger Harrison teve de enfrentar uma batalha legal para manter o seu emprego. Ambas eram polícias. Já na qualidade de ex-agentes da autoridade, a brasileira Anamara Barreto e a argentina Maria del Luján Telpuk (esta tornada famosa pela descoberta, em 2007, no aeroporto de Buenos Aires, de uma mala cheia de dinheiro que deu origem ao escândalo político conhecido como "Maletinazo") tiveram menos problemas. Regressando ao mundo do ensino: a instrutora de claque de um liceu da Califórnia Carlie Christine foi despedida depois de aparecer nua na Playboy. Aconteceu no ano passado.

"Pensar em tudo"

Não parece, portanto, ser um cenário exclusivamente português. O que, teoricamente, deve fazer pensar duas vezes quem avança para este tipo de exposição. "Tem de se pensar em tudo, o que a família vai pensar, se vai ferir susceptibilidades e se vai, ou não, chocar com a carreira", diz Carla Matadinho. A modelo e apresentadora de TV nunca fez produções deste género, mas acha natural que haja mulheres a fazê-lo: "Há quem aceite por uma questão de auto-estima, sentem-se mais bonitas, mais seguras. E também há quem apenas queira aparecer... As mulheres ficam lisonjeadas pelo convite e esquecem-se do que pode vir a seguir; as consequências podem durar muito tempo."

Também Carla acha que o facto de Bruna Real ser professora agravou a reacção social. Isso e o facto de se tratar de uma localidade pequena, do interior. "Quem vive em Lisboa, ou nos centros urbanos, acha normal haver mulheres a despirem-se para uma revista. Mas se formos ao interior, seja ela manequim ou professora, continua a não ser bem visto. E em Portugal também não é uma coisa muito normal: a própria Playboy existe há menos de um ano."

A verdade é que as reacções costumam ser particularmente intensas quando a mulher em questão tem uma vida "normal" - entenda-se: não é modelo, nem actriz. Artista, falando genericamente. Mas as revistas não resistem a este picante extra de ter nas suas páginas, com pouca ou nenhuma roupa, pessoas que, por definição, estão mais próximas do comum dos cidadãos.

A GQ só fala de gente conhecida, mas Domingos Amaral reconhece que há muita procura, noutras publicações, por novos talentos. "Acontece o mesmo noutras áreas, como nos concursos televisivos", salienta. É a velha máxima americana, que elogia as mulheres espectaculares que não parecem de outro mundo. São as girls next door, aquelas que podiam ser nossas vizinhas. Surpresa: a professora do meu filho está na Playboy! A graça da ideia "está nessa perversidade", acentua Domingos Amaral.

Mas, e a partir daí? Como reagir a isto? No caso concreto, que mal virá ao mundo - e aos seus alunos, em particular - por Bruna Real ter aparecido nua nas páginas de uma revista?

"Haverá curiosidade, naturalmente", avança Nuno Nodin, psicólogo especialista em sexualidade. "Mas as crianças, pelo menos algumas, vêem os pais nus em casa. Não vai ser um trauma para elas, a não ser que a reacção dos pais a isso leve. Recordo que, durante anos, crianças e adolescentes em Portugal tiveram acesso a conteúdos pornográficos no famoso canal 18 do cabo e ninguém fez nada. Comparado com isto, o caso de Mirandela não me parece grave."

Vamos ser práticos. Se dependesse de si, Bruna Real teria sofrido consequências profissionais da sua decisão de posar nua? José Gameiro, psiquiatra e professor de Psicologia da Família, responde directamente: "Se dependesse funcionalmente de mim, não lhe aconteceria nada." Mas essa é a posição pessoal. A análise profissional do caso admite que o facto de ser professora possa levantar "alguns problemas em relação aos alunos". E a polémica até terá um lado positivo: "É uma forma de se discutir o assunto. Mas essa discussão deve ser feita sob o prisma de percebermos se temos o direito de criticar estas coisas. A verdade é que somos todos uns falsos moralistas."

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