Ivete Sangalo "tirou o pé do chão" ao Rock In Rio

Foto
A colombiana ensaiou dança do ventre e foi de uma simpatia protocolar quando se dirigiu à plateia em português Nuno Ferreira Santos

A música, como habitualmente não deslumbrou. Tonificou com Ivete Sangalo, desiludiu com Shakira. O Rock In Rio igual a si mesmo. Uma enchente de 81 mil pessoas no Parque da Bela Vista.

A organização avançava que 81 mil pessoas estavam no Rock In Rio, no Parque da Bela Vista. Toda a tarde fora em crescendo, com o verde da relva a tornar-se cada vez menos visível à medida que chegava mais e mais público, e à medida que aqueles que desde o início da tarde se tinham atarefado a investigar todos os recantos e a recolher todos os brindes possíveis, decidiam fixar-se junto ao palco principal. Não é difícil precisar o momento em que se percebeu que a enchente seria real.

Mariza já tinha mostrado ser roqueira - pelo casaco preto de cabedal e por pôr o público a responder aos seus gritos de incitamento, qual Freddie Mercury em corpo de fadista. Já tinha mostrado que a sua música, onde cabem solos de bateria e aproximações à pop (“Morada aberta”), onde o fado clássico de “Maria Lisboa” convive com temperos magrebinos ou cabo-verdeanos (Tito Paris surgiu como convidado), se aproxima cada vez mais da noção globalizada de “world music” – é menos fado e mais “do mundo”. Mariza, de olhos humedecidos, já tinha emocionado o público com “Ó gente da minha terra” e, logo a seguir, ao encerrar o concerto com uma versão de “Come as you are”, dos Nirvana, protagonizado o momento desconcertante, por tão desadequado, do primeiro dia de Rock In Rio.

O público já viajara por todo o recinto, visitando as lojas, apanhando os óculos-guitarra lançados desde um dos stands, arriscando a montanha-russa, espreitando o Palco Sunset por onde passaram Boss AC ou os OqueStrada e criando longuíssimas filas, não para ver Lisboa e o Parque da Bela Vista desde a roda gigante, mas para obter sofás vermelhos insufláveis (um verdadeiro mistério, o poder de atracção que aqueles sofás têm). Tudo isso já tinha feito o público. Até que…

Os bailarinos, os metais e a percussão. A festa que não acaba porque o pé não pára de levantar do chão. E quanta festa e quanta alegria pode um ser humano aguentar, perguntámo-nos naquele preciso momento, aquele em que Ivete Sangalo conduziu várias dezenas de milhar numa coreografia de braços no ar e bamboleio imparável. Ivete Sangalo é como que artista residente do festival e o povo do Rock In Rio adora-a. A estratégia é a de sempre, a música idem. Começa lenta em ritmo de balada dolente, por mais bizarra que soe uma balada decorada com as palavras, “poeira, poeira, levantou poeira” (as primeiras de “Sorte grande”), e, depois, a poeira levanta mesmo e o frenesim mantém-se até nova pausa e nova canção.

Um concerto de Ivete Sangalo, com um baixo mais funk ali, um tempero latino aqui e axê por todo o lado, é, digamos, ginástica constante. No Rock In Rio 2010, foi-o novamente. E foi suficiente para que a baiana de mini saia e decote generoso, que não é “gostosa” porque foi mãe recentemente, mas “é muito feliz”, como respondeu a um piropo da plateia, tivesse assinado o momento mais Rock In Rio da primeira noite de festival. Ou seja, tudo euforia e espalhafatosa alegria. E se nada existe de notável naquela música para além do típico temperamento festivo brasileiro, a verdade é que o dia foi dela - ninguém mais produziu aquele efeito catalisador na multidão.

Shakira era a mais aguardada, como se constatou primeiro pela quantidade de t-shirts com o seu nome (ou pela criança adorável que “tatuou” o braço com lapiseira: “Sharika”, escreveu), e como se confirmou depois pelo estado intrasitável em que a sua chegada deixou o recinto: marcar encontro com quem quer que fosse, onde quer que fosse, tornou-se virtualmente impossível. O concerto, porém, revelou-se uma desilusão.

A colombiana ensaiou dança do ventre como se vê nos telediscos (logo a início, com “Ojos asi”), pegou na guitarra e passeou o suporte de microfone como roqueira, foi de uma simpatia protocolar quando se dirigiu à plateia em português. Mas isso não apagou no público a sensação de estar a presenciar um concerto para cumprir calendário, sem chama - nem mesmo “Whenever wherever”, o êxito dos êxitos, provocou tumulto popular assinalável. A verdade, de resto, é que as suas canções soam a maior parte do tempo a pastiche de rock de outros tempos, devidamente “latinizado” – exemplo prático: conseguimos cantar “Eternal flame”, das Bangles, sobre a melodia de “Underneath your clothes”.

Antes de Shakira, o americano John Mayer fizera suspirar adolescentes exibindo o seu nome pintado na testa, enquanto aproveitava baladas e blues rock formatados ao FM americano (para passar a seguir aos Eagles e antes de Stevie Ray Vaughn) e mostrava com quantos solos de guitarra se faz uma cara laroca. E horas antes dele, no Palco Sunset, Boss AC, de fato branco impecável, acompanhado pelo angolano Yuri da Cunha e sua dança alucinante, fazia a ponte entre hip hop, salsa, semba e samba e assinava o melhor concerto do dia - a par do fado, felizmente bastardo e onde tudo cabe, dos OqueStrada, acompanhados em palco pelos convidados Anonima Nuvolari, apresentados como os “italianos mais lisboetas do mundo”.

Mariza ainda não inaugurara o Palco Mundo, Ivete Sangalo não tinha levantado poeira e a maior parte do público vagueava pelo recinto, hipnotizado pelas solicitações constantes dos speakers de serviço presentes em cada esquina, em cada tenda de patrocinador.

Sugerir correcção
Comentar