Paulo e Carlos, um par religioso

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Paulo e Carlos tiveram dificuldades legais para comprar casa ENRIC VIVES-RUBIO

São cristãos empenhados. Um baptista, o outro adventista. Têm reservas quanto ao termo "casamento", mas defendem as vantagens da nova lei. Alexandra Lucas Coelho

Leiam na camisa deles: "Não estou à espera de uma mulher... Estou só à espera de um amigo..." Sendo que aqui amigo é no sentido poético medieval, o amado.

Namorados a viver juntos e cristãos praticantes, Paulo e Carlos ficaram satisfeitos com a promulgação da lei anunciada segunda-feira por Cavaco Silva. "É positivo para a maioria dos casais homossexuais", diz simplesmente Paulo. "O termo casamento pode ser desnecessário, mas devemos ter direitos iguais, e acho que as reservas do Presidente são de natureza religiosa, e como tal não deviam ser utilizadas na promulgação de uma lei do Estado", diz Carlos.

Ou seja, mesmo com reservas ao termo "casamento" entre homossexuais, Paulo e Carlos não se opõem à aplicação da lei por acharem que será bom para muitos.

E porque têm reservas ao termo "casamento"?

Longa questão. O melhor é sentarmo-nos.

E portanto aqui estamos, num dia de Primavera nos arredores de Lisboa, num bairro de apartamentos, na varanda da casa deles, três assoalhadas compradas a meias (e que problema que isso foi, já lá vamos).

Não são católicos. Um é baptista, o outro adventista.

Paulo, o baptista, é o fumador da casa. Ronda os 30 anos e trabalha em recursos humanos.

"Quando comecei na igreja havia um grupo de jovens, agora somos quatro. O facto de ser uma igreja conservadora, mesmo fundamentalista, não ajuda." Passa de pais para filhos. "A minha bisavó já fazia parte. Nasci dentro da igreja." E continua a fazer sentido. "Estou de acordo com as regras. Claro que não há uma igreja perfeita. Perfeito é Deus." E que diz a doutrina da igreja de Paulo em relação à homossexualidade? "Que é abominável aos olhos de Deus."

Uma terminologia que a igreja maioritária em Portugal, a católica, já não usa, embora o estigma persista (ver reportagem de 11/4 na Pública).

Como é que Paulo concilia, então, ser baptista e homossexual?

"Dou muita importância à relação pessoal com Deus. A igreja em si não salva. É importante para aprender, para reflectir. Mas o facto de eu ser homossexual de maneira nenhuma é incompatível com ter uma relação com Deus. Tenho uma relação com a igreja, mas sempre tive cuidado de não misturar as coisas. Estamos na igreja para ser úteis, para ser servos de Deus, para anunciar a Sua palavra. Só desistirei da igreja se me pedirem para sair."

Ambas as famílias sabem, mas não a igreja de Paulo. "Podem existir rumores, mas ninguém sabe. Penso que a igreja me considera útil."

Biblicamente, pecado

E não tem a ambição de que a igreja mude em relação à homossexualidade?

"Zero. Biblicamente é um pecado, como a hipocrisia e a gula. Não há pecados maiores e menores. E se ouvir dizer que não é pecado saio da igreja. Não é a sociedade que tem de mudar a igreja. É a igreja que tem de mudar a sociedade. Esse é o maior desígnio de Deus."

Pode mesmo implicar o fim deste par: "Já o disse ao Carlos, e penso que nisso temos uma perspectiva comum: se a nossa relação tiver de terminar, que seja por vontade de Deus. Sei que não sou perfeito, que não sou um cristão exemplar. Mas sei que, para além dos meus erros, Deus intervém na minha vida e transforma-me na medida em que quiser."

De resto, Paulo não põe a sexualidade no centro. "A nossa geração vive à volta da sua própria homossexualidade, como se fosse a razão de existir. A homossexualidade faz parte da minha vida, mas não é a essência. Eu não posso constituir uma minoria e ir para o meio da rua. O meu objectivo é estar inserido na sociedade. Acredito que um homossexual pode ser um testemunho como outro qualquer."

Mas aspira a não ser homossexual? "Não." Imagina-se homossexual para sempre. "Ah, sim, sim. Mas aspiro a ser salvo e a não ir para o inferno. Ser homossexual não é uma escolha. Aos 18 anos é muito mais fácil não ser homossexual. As igrejas dizem que a homossexualidade é um perigo, mas é mentira. Não se apanha. É uma condição irreversível. Acredito que Deus tem um plano para cada pessoa e que me criou. E sei que a homossexualidade vem comigo desde que nasci."

Então foi Deus? "Não gostava de ir tão longe. Nasci na condição de homossexual. Tudo na minha vida está nas mãos de Deus. A relação que tenho neste momento está nas mãos de Deus, não sei que plano Deus tem para ela. Mas sou feliz assim, não vivo a pensar: é pecado, é pecado, é pecado. Embora sabendo que é."

E sempre soube que era gay. "Aos 18 anos decidi ter uma relação, e há oito anos contei à família. A reacção no início foi complicada. A minha família não concorda, mas respeita. O Carlos vai aos encontros de família."

Carlos é o que veste a t-shirt do amigo-amado. Professor de Matemática, 33 anos. Sendo ele adventista, como conheceu um baptista?

"Foi há dez anos, por amigos comuns", resume. Um coup de foudre? "Sim, sim." Paulo acrescenta: "O facto de ser crente ajudou imenso quando decidimos assumir a relação."

Que diz a doutrina adventista quanto à homossexualidade? "O mesmo que a baptista", sorri Carlos. "Abominação, pecado, iniquidade são os termos oficiais." Soube sempre que era a sua condição. Teve as primeiras experiências na adolescência e contou à família quando assumiu esta relação.

"Primeiro houve a introdução do amigo. Eu aparecia na igreja dele, ele na minha. Contei à minha irmã mais velha, e ela contou à minha mãe, que reagiu muito mal. Nem sequer quer ouvir falar no assunto. É tema tabu. Se a minha mãe estiver presente, não está o Paulo. O resto da família não aceitou bem, mas respeita."

Na igreja de Carlos há mulheres pastoras, na de Paulo não. E um pastor homossexual?

"Não podemos ir tão longe", acha Paulo. "Por que não?", pergunta Carlos. "Porque é um exemplo para a sociedade."

O problema da família de Carlos era que ele não fosse extravagante. "Uma prima disse-me: "Tudo bem, mas livra-te de me apareceres com plumas." Verem que eu me vestia normalmente levou a uma abertura."

Carlos não só crê que a homossexualidade é pecado, como acha que não pode estar nos planos de Deus. "A Bíblia é o livro que Deus nos deixou como manual de instruções. A partir do momento em que o pecado entra no mundo há um desvio do plano de Deus. A homossexualidade tem de ser sempre um desvio do plano de Deus. Aceito e respeito que a igreja não pode aceitar a homossexualidade, como não pode aceitar cobiça e roubo. A igreja tem de ser o garante do normativo, e não concebo que aceite qualquer um destes fenómenos. Em termos de salvação, qualquer um tem a sua falha, uns terão a mentira, eu tenho a homossexualidade. Sei que não foi a vontade de Deus quando criou o homem que ele fosse homossexual."

"Deus é perfeito, não falha", contrapõe Paulo. "Deus cria e o homem vai degenerando", responde Carlos. "Deus sabe as minhas dúvidas. Tive um período longo de luta em que tentei namorar mulheres." O que aconteceu? "Não sentia nada." Ri-se. "Deus sabe os momentos que travei em oração para compreender o que vivo. A certa altura coloca-se a questão de viver vida dupla ou assumir. E entre os dois males, o menor. Se isto me levará à salvação, não sei. Mas a homossexualidade faz parte de mim, qualquer outra forma seria contra-natura." Quando decidiu assumir a relação, fez um corte: "Tomei a iniciativa de me desvincular da igreja. Invoquei motivos pessoais. E assim estou. Mas continuo a ir todos os sábados." O dia santo dos adventistas. A igreja sabe? "Sabe. A minha família está toda lá."

E Carlos não espera uma mudança. "A igreja já criou os mecanismos de aceitação social do divórcio. Mas não está preparada para fazer isso em relação à homossexualidade." Poderá vir a estar? "Acreditamos que Jesus Cristo voltará para nos salvar do pecado." Portanto, se Cristo vier acaba a homossexualidade? "Exactamente, como todos os outros pecados."

A aliança de Carlos é porque deu aulas a adultos, e isso dissuadia "o assédio das alunas". Mas também "por ter assumido uma relação". Paulo não usa. "Não gosto de ver." E casamento, mesmo? "Religioso, nem pensar", diz Carlos. "Civil, faz todo o sentido. Sendo cidadão de um Estado laico, porque não hei-de ter os direitos de outro casal? Vivemos juntos, e se o Paulo ficar doente não posso tomar conta dele. Preferia que o termo fosse união de facto, mas acima de tudo quero que haja algo." E adopção? "É uma não-questão para mim, mas não vejo por que não. Lido com crianças todos os dias e vejo o que tantos casais heterossexuais fazem aos filhos." Que diz Paulo? "Casamento não, porque é uma instituição divina." E adopção? "Sim. Existem problemas sociais com crianças maltratadas, orfanatos, casas pias. Se há homossexuais que lhes podem dedicar o seu tempo e amor, por que não?"

Exemplo prático de uma discriminação, esta casa. "Foi uma batalha para a comprar, porque dois homens não podem comprar casa permanente se não forem da mesma família."

Agora vão poder.

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