Jonathan Coe entre as mulheres

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O livro nasce de uma imagem que estava há muito na cabeça do britânico Jonathan Coe - "Uma jovem cega numa festa de família, rodeada por adultos, que se sentiam curiosos em relação a ela e não sabiam exactamente como é que ela se encaixava neste grupo familiar. É uma memória que tenho de uma festa que a minha família deu há quase 25 anos. Tudo partiu dessa imagem. Queria explicar quem era essa rapariga, porque é que ela estava ali, como é que tinha ficado cega."

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O livro nasce de uma imagem que estava há muito na cabeça do britânico Jonathan Coe - "Uma jovem cega numa festa de família, rodeada por adultos, que se sentiam curiosos em relação a ela e não sabiam exactamente como é que ela se encaixava neste grupo familiar. É uma memória que tenho de uma festa que a minha família deu há quase 25 anos. Tudo partiu dessa imagem. Queria explicar quem era essa rapariga, porque é que ela estava ali, como é que tinha ficado cega."

Coe - autor de "A Casa do Sono", "O Rotter's Club" e a sequela deste, "O Círculo Perfeito", ou ainda de "Que Grande Banquete!", estes sátiras da vida (nomeadamente a vida política) britânica nas últimas décadas - afasta-se do humor e da crítica social que têm marcado a sua obra para seguir a jovem cega, Imogen. E, em "A Chuva Antes de Cair" (editado em Portugal pela Asa, tal como os livros anteriores) envolve-se numa história de mulheres, dramática, e que muitos consideraram uma mudança na sua obra.

"Acho que nunca tive uma reacção tão confusa a um livro. Tem sido muito difícil saber o que fazer com isso", confessa. "Há quem ache que é o meu melhor livro e quem ache que é o pior." Para ele não foi uma mudança. "Tudo o que está neste livro estava nos anteriores, geralmente submerso sob camadas de ironia, comédia, comentário social e político. Retirei todas essas camadas e o que temos aqui é o que está no centro dos meus outros livros, mas agora de forma mais clara", explica ao Ipsílon numa conversa num hotel de Lisboa - uma vinda para apresentar o livro adiada uma primeira vez por causa da nuvem de cinzas que obrigou ao cancelamento do seu voo, e que, agora, coincide com a chegada do Papa Bento VI e com uma cidade semi-paralisada. 

E o que são essas questões essenciais que, afinal, sempre estiveram na sua obra? Coe hesita um momento, e prossegue, contido, discreto, quase tímido. "Há um tom de melancolia, uma preocupação com a passagem do tempo, um interesse em encontrar padrões e significado em séries de acontecimentos aparentemente casuais".

Em "A Chuva..." há, em primeiro lugar, um conjunto de mulheres complicadas, de complexas e por vezes violentas relações entre mães e filhas, num padrão (sim, o tal padrão) que se repete de uma geração para a seguinte. "A relação entre mães e filhas pode ser particularmente intensa, e poderosa na forma como molda o carácter das pessoas".

De onde vêm todas estas mulheres - Rosamond, que, aos 70 anos, conta a história, a sua prima Beatrix, em crescente descontrolo pela vida fora, Thea, Imogen? E de onde vem a forma confortável como Coe parece instalar-se neste universo feminino? "Ninguém seria um escritor decente se não conseguisse escrever do ponto de vista de metade da humanidade", responde rapidamente.

Mas acrescenta que vive "num mundo muito feminino", com a mulher e as duas filhas, e que a maior parte das suas amigas são mulheres. É com mulheres que tem mais facilidade em falar, são os assuntos de mulheres (e reconhece o cliché) que lhe interessam, "família, relações, filhos".

Filhos, sobretudo. O novo livro, que acaba de editar no Reino Unido ("The Terrible Privacy of Maxwell Sim"), é sobre um pai e um filho. Não se trata de uma relação intensa e violenta como as de mães e filhas em "A Chuva Antes de Cair", mas de uma relação de distância, de afastamento. E aí Coe volta um pouco ao tom satírico, à política como pano de fundo da história.

No livro que acaba de lançar em Portugal tudo isso seria supérfluo. Há uma tragédia, que parte de uma constatação: há mães que não gostam dos filhos. "Nem todas as mulheres são maternais", diz Coe. "A maioria das mulheres que não tem instintos maternais não tem filhos, mas conheci algumas que, por uma razão ou outra, tiveram filhos e não têm qualquer interesse neles. Não se trata de porem a carreira em primeiro lugar, trata-se de não quererem ter uma relação com os filhos".

É trágico para uma criança "ficar aprisionada durante a infância nessa pequena unidade familiar com uma mãe que não quer que ela esteja ali, e a acha mais um obstáculo e uma contrariedade do que um objecto de amor". Coe conheceu casos assim e viu como "uma relação desse tipo afecta profundamente as pessoas".

Fechado num quarto

Para contar a história criou Rosamond, homossexual num período em que era ainda bastante difícil assumi-lo, os anos 50, mas, à parte disso, uma pessoa "bastante convencional". É ela que, no final da vida, confia a história de Imogen a uma série de cassetes que grava antes de morrer e que vão ser encontradas pela sua sobrinha, junto com vários álbuns de fotografias.

Quem é Imogen? É esta a pergunta que nos obriga a seguir a história que Rosamond vai contando através de velhas fotografias, ordenadas cronologicamente, como se a descrição o mais objectiva possível destas permitisse chegar a uma qualquer verdade.

"Rosamond não é uma narradora simples, em quem possamos confiar inteiramente", avisa o autor. "Há leitores que não acreditam em nada do que ela diz no livro e que acham que está a distorcer a história para dar uma boa imagem de si própria. Não era essa a minha intenção. Ela é como toda a gente. Às vezes podemos confiar nela, outras vezes não. Tem uma relação escorregadia com a verdade, como julgo que aconteceria a qualquer pessoa que estivesse a olhar para a sua vida na velhice e a tentar recordar-se de tudo".

As fotografias ajudam. E ter um esquema "fechado" para contar uma história, através da descrição de imagens, ajuda um escritor ou, pelo contrário, limita-o? "Isso tem a ver, mais uma vez, com a minha família. Não é uma família de escritores - e não quero dizer apenas que não há escritores publicados mas que as pessoas não escrevem mesmo, não há cartas, a história da família não está em papel, está em fotografias". Quando levava as filhas pequenas a visitar os avós, Coe mostrava-lhes os álbuns de fotos e contava-lhes histórias. "As fotos tornaram-se a base de uma narrativa da história da família. Já tinha decidido que [no romance] a pessoa que ia ouvir a história seria cega, e isso tornava a descrição das fotografias um maior desafio, porque tinha que ser muito detalhada". Limitativo, sim, de certa forma, admite, mas "as limitações acabam por ser libertadoras".

Confessa que escrever este livro lhe deu um prazer especial, porque lhe permitiu afastar-se dos enredos habitualmente complexos, cheios de personagens e de histórias que se cruzam, e centrar-se apenas naquela narrativa que se agarra a um fio de história, de imagem em imagem. "Foi uma sensação de liberdade ficar fechado num quarto durante alguns meses com esta mulher de 70 anos", diz, sorrindo.

E que "verdade" revelam essas imagens que Rosamond descreve - uma casa numa quinta, uma caravana, um passeio num lago, uma casa de férias, e rostos, que se repetem em algumas fotos, sempre mais velhos? A "verdade" que nos diz que nada acontece por acaso, que há relações de causa e efeito, e que ninguém sobrevive incólume a uma mãe que não a ama.

Tudo tem a ver com os tais padrões, com as ligações entre acontecimentos. "Interessa-me perceber quão profunda é a influência, construtiva ou negativa, que os nossos pais têm sobre nós e até que ponto é fácil, ou não, escapar a ela". Aos 48 anos, e pai de duas filhas, a questão tornou-se central para Coe. "Até um certo ponto acreditamos que somos a nossa própria criatura, e um dia olhamos para o espelho e apercebemo-nos de que estamos a olhar para o nosso pai ou a nossa mãe. Foi nesse momento que decidi que queria escrever este livro."