Morreu Saldanha Sanches que fez da coragem um projecto de vida

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Saldanha Sanches deixou a militância política para se dedicar à justiça Enric Vives-Rubio

Funcionário do PCP, dirigente partidário, professor universitário e fiscalista, José Luís Saldanha Sanches enriqueceu a história social portuguesa

Acreditava que "aquilo que não nos destrói torna-nos mais fortes". Disse-o quando acompanhou o ex-Presidente Jorge Sampaio na visita à cela do Forte de Peniche onde Álvaro Cunhal esteve preso. Mostrou-o ao longo da sua vida na luta contra o regime do Estado Novo, primeiro como militante do PCP e depois do MRPP, em que foi preso e torturado. Continuou a mostrá-lo, durante o resto da sua vida, quando deixou de acreditar na eficácia da militância política e se tornou num empenhado professor de Direito e num conhecido fiscalista. Atento e sempre crítico à actualidade.

José Luís Saldanha Sanches morreu ontem, com 66 anos, no hospital de Santa Maria, em Lisboa. Tinha um cancro e estava internado há três semanas. Era casado com a procuradora-geral adjunta Maria José Morgado, com quem tinha uma filha. Vai ser cremado, amanhã, ao princípio da tarde, no Cemitério dos Olivais, em Lisboa.

Saldanha Sanches distinguiu-se como dirigente político durante o fascismo, mas recusava o saudosismo dos tempos da luta e da militância. De quando não pretendia ser político, mas revolucionário. E em vez da liberdade, defendia a justiça. De quando escolhera a coragem como projecto de vida. Hoje reconhecia que o MRPP onde militara era uma "fraude" e tinha amigos que definia como "claramente de direita" que dizia respeitar "profundamente pela sua honestidade intelectual". Foi o que disse, numa entrevista à revista do PÚBLICO (Pública) há dois anos.

O seu nome tornou-se mais conhecido entre os opositores ao regime, sobretudo depois de ter sido baleado quando distribuía panfletos, numa rua de Lisboa, apelando à população para participar na manifestação do 1.º de Maio, em 1964. Apareceu a polícia. Ele fugiu. Eles dispararam. Foi atingido e preso mas mesmo assim resistiu, ao murro, contra um agente da polícia política (PIDE).

Mário Soares foi seu advogado e defendeu-o no tribunal plenário de Lisboa, a pedido da mãe. Num testemunho concedido ao PÚBLICO (ver texto na íntegra), Soares conta: "Não hesitei um momento. Fui visitá-lo à prisão, conversámos, tomei conhecimento da aventura da sua prisão. Não foi um julgamento fácil."

Saldanha Sanches foi condenado, mas não ficou preso. O tempo em que estivera detido a aguardar julgamento contou para a pena aplicada. Ele era nesse tempo estudante da Faculdade de Direito de Lisboa e militava no PCP.

Da clandestinidade...

Só anos mais tarde entrou para a clandestinidade, aceitando o convite de Veiga de Oliveira, destacado combatente contra o regime do Estado Novo, ex-ministro dos governos provisórios em 1975 e 1976 e deputado comunista. Sanches tornou-se funcionário do Partido Comunista e foi numa casa clandestina que a PIDE o encontrou e prendeu. Ficou durante cinco anos em Peniche.

Rui Filipe Ramos, ex-preso político por ligações ao MPLA, também detido em Peniche, lembra-se do dia em que tiraram Saldanha Sanches do isolamento. "Fui estender roupa no estendal da parte interior do Pavilhão A (...) ouvi uma voz gritar "Saldanha Sanches saiu do isolamento". Olhei e vi uns olhos brilharem atrás das grades. Corri para a cela do Pavilhão A e comuniquei aos presos da minha cela: "O Saldanha saiu do isolamento." A partir daquele momento comunicámos aos carcereiros que deixávamos de estar em greve da fome por o Saldanha ter sido castigado com isolamento".

Foi por esse tempo em que estava na cadeia que ele casou com uma jovem militante comunista, para receber visitas. Acabou por se separar sem consumar o casamento, porque decidiu sair do PCP e ela recusou-se a acompanhá-lo.

Quando volta à Faculdade de Direito, assume-se como militante do MRPP, destacando-se rapidamente como um dos seus principais dirigentes. Aí se cruza com Maria José Morgado, com quem casa, e com o ex-primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso, que o acompanha muito de perto nas divergências e confrontos com outros elementos do partido. O presidente da Comissão Europeia lembra como "o extraordinário exemplo de coragem" de Saldanha Sanches "mobilizou para a acção política muitos jovens, antes e depois do 25 de Abril".

Depois da revolução de Abril é "talvez o primeiro rosto legal visível do MRPP enquanto director do jornal Luta Popular", como lembra Fernando Rosas, na época também dirigente daquele partido. E foi por ter publicado naquele jornal um artigo em que incitava os soldados à deserção armada que voltou a ser detido, tornando-se no primeiro preso político depois do 25 de Abril.

... à desilusão com o MRPP

Mas Saldanha Sanches acaba também por se desiludir com o MRPP. Um dos primeiros sinais terá sido dado durante uma reunião no Teatro Maria Vitória, em Lisboa, entre várias facções de movimentos maoístas para a constituição da Associação de Amizade Portugal-China. Um confronto de militantes do MRPP com um militante rival foi discretamente desmobilizado pela intervenção de Sanches.

Ainda fez uma breve passagem por outro grupo de extrema-esquerda, a UDP, antes de deixar os partidos e desistir da militância política. Empenha-se então na sua valorização pessoal, nunca abandonando, porém, a atitude atenta, crítica e independente face à realidade.

Em 1986, Saldanha Sanches obtém o grau de mestre em Ciências Jurídico-Económicas. Dez anos depois faz o doutoramento na mesma área e passa a dar aulas na Faculdade de Direito de Lisboa, primeiro como assistente, depois como professor auxiliar e, por fim, como docente associado e regente em cursos de mestrado.

Distingue-se então como fiscalista, sendo autor de vários livros e artigos que abordam, sobretudo, a questão da tributação do lucro de empresas.

"Vazio cívico" da sua morte

Para o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Sérgio Vasques, "Saldanha Sanches será lembrado como uma referência para toda a geração de fiscalistas que o acompanhou".

Também o advogado e fiscalista Rogério Fernandes Ferreira elogia a coragem de Sanches e as suas opiniões "com as quais, apesar de nem sempre concordar, reconhecia que procuravam o "justo e o correcto"".

A sua perspectiva crítica relativamente às questões da actualidade gera muitas vezes discórdias e polémicas como a que resultou da afirmação de que "nas autarquias da província há casos frequentíssimos da captura do Ministério Público (MP) pela estrutura autárquica".

Numa das suas últimas intervenções, lançou também a polémica quanto ao Programa de Estabilidade e Crescimento quando observou que a medida de criar um novo escalão para o IRS é apenas simbólica e defendeu a necessidade de cortar mais na despesa pública.

Na lista dos cargos que constam no seu currículo destacam-se os que ocupou no Centro de Estudos Fiscais, entre 1984 e 1996, no Conselho Nacional da Fiscalidade, entre 1996 e 2000, além de ter sido ainda membro fundador da European Association of Tax Law Professors.

Fez também parte da Comissão Monti para a Reforma dos Impostos sobre o Rendimento e Representação de Portugal, em 1997.

Nos últimos anos, foi comentador político e económico na SIC Notícias e mandatário de António Costa, nas eleições para a Câmara Municipal de Lisboa. "Tive a honra de o ter como mandatário financeiro da minha candidatura em 2007, mas esse apoio e amizade nunca limitaram a sua exigência para comigo", diz António Costa, considerando que a morte de Saldanha Sanches "deixa um grande vazio cívico".

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