Temos uma capela dos ossos pré-histórica única.Mas é por pouco tempo

Foto
Uma das câmaras funerárias do complexo, de onde já se tiraram 40 crânios

Não se conhece nada assim: há cerca de cinco mil anos, homens da nossa espécie abriram um buraco oval no chão e revestiram as suas paredes com ossos humanos. Crânios, fémures, tíbias. O achado vai ser destruído por uma conduta de rega da Barragem do Alqueva. Por Teresa Firmino (textos) e Enric Vives-Rubio (fotografia)

As papoilas ondulam, encarnadas, o verde das oliveiras perde-se de vista, o branco do casario de Ferreira do Alentejo sobressai na planície ao fundo. E, no solo, é visível parte de uma vala já tapada e condutas de rega que aguardam ao lado, interrompidos que foram os trabalhos pelo que se interpôs no seu trajecto: um local de enterramento colectivo pré-histórico, com uma estrutura nunca antes vista.

Aproximemo-nos. No meio das duas extremidades da vala já cobertas de terra, ergue-se uma barraca toscamente construída, de madeiras e plásticos azuis, que protegem a descoberta arqueológica. Entremos, guiados pela arqueóloga Helena Santos. Até porque o sol queima.

Surge um buraco oval, com ossos humanos à volta. Crânios esmagados e ossos longos, como fémures, tíbias e úmeros, saltam à vista. "Nem sei o que hei-de chamar a esta estrutura, porque não há nada paralelo", diz Helena Santos, da empresa Era Arqueologia. "A particularidade deste buraco é estar revestido a ossos. E os ossos estão dispostos na vertical, esmagados contra a parede. É único, em Portugal e no estrangeiro."

Não puseram pedras a sustê-los parede acima. "A hipótese é que tenha sido construída uma estrutura de um material perecível - de paus, de canas... -, onde os ossos foram colocados." Portanto, empilharam-nos entre a estrutura que desapareceu com o tempo e a parede. "O meio do buraco estava intencionalmente liberto de ossos", continua a explicar a responsável pela escavação.

Entre os mistérios, algumas certezas. Esta estrutura funerária colectiva, porque é disso que se trata, foi construída entre há 5500 e cinco mil anos - ou seja, entre o Neolítico final e o Calcolítico, ou Idade do Cobre. Os homens que a construíram eram da nossa espécie, já que nessa altura da história da evolução humana só existíamos nós.

"Mas o objectivo da construção, o pressuposto mental que levou os homens do Calcolítico a fazer esta estrutura, é totalmente desconhecido. Não conseguimos perceber."

A vala da revelação

Até ao início de Agosto do ano passado, nada do que se manteve soterrado durante cinco mil anos transparecia à superfície. A máquina que abria a vala, para se instalar o sistema de rega da Barragem do Alqueva, ia rasgando a terra. À frente, seguia um arqueólogo de acompanhamento da obra, contratado pela Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA). A certa altura, o solo apareceu com uma cor diferente. Em vez do caliço branco da zona, surgiram umas manchas castanhas, indício de um achado arqueológico.

Em meados de Agosto, entrava em campo a equipa da Era Arqueologia, contratada pela EDIA para escavar os achados descobertos nas obras relacionadas com a barragem.

A princípio, depararam-se com 14 buracos circulares, fundos e estreitos, escavados no caliço. Terão servido para armazenar produtos e, quando tiraram lá de dentro os sedimentos acumulados pelos anos, encontraram fragmentos de potes de cerâmica, utensílios líticos e até pesos de tear.

Parecia uma escavação rápida, que avançava pelo futuro traçado dos tubos de rega. "Fomos percebendo que havia ossos humanos. O que será? O que não será?", conta Helena Santos. "Fomos escavando mais e percebemos que a linha de ossos era circular, mas que só tínhamos metade do círculo."

Tanto a EDIA como o Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar) decidiram abrir o resto da estrutura, para ver o que lá se escondia. "E percebemos que era um círculo completo e que os ossos estavam na vertical."

Houve muitas visitas ao local. "Todas diziam que não se conhece nada assim, nem para outros períodos mais antigos ou mais recentes." Numa das visitas, alguém se lembrou: "Eh, pá, parece a capela dos ossos", conta Helena Santos, referindo-se à famosa capela de Évora (construída no século XVII, por iniciativa de monges franciscanos que queriam transmitir a ideia de que a vida na Terra é transitória, e cujas paredes estão enfeitadas com caveiras e ossadas humanas).

Por brincadeira, e à falta de melhor designação, chamemos "capela dos ossos" pré-histórica à estrutura funerária com cinco mil anos (atenção, arqueólogos e antropólogos, é só uma metáfora).

Por agora, a estrutura funerária oval, com três metros de diâmetro, no máximo, foi escavada até aos 80 centímetros de profundidade e tem à vista mais de 30 crânios. Quando Helena Santos se põe lá dentro, com o cuidado de não pisar os ossos no rebordo, o buraco dá-lhe pelo meio das pernas. Até que profundidade vai? "Ainda não sabemos."

(Mais tarde, o subdirector do Igespar, o arqueólogo João Pedro Cunha Ribeiro, confirmaria a importância do achado: "A solução de enterramento, na vertical, é absolutamente única. Não tem paralelo.").

Os ossos longos e os crânios encontram-se desarticulados entre si, como se tivessem sido escolhidos: "Dá a sensação que foram depositados noutro local e foram trazidos para aqui já descarnados. Para já, parece que os indivíduos não estão inteiros."

Talvez até tenham vindo de perto, de um local mesmo ao lado. Helena Santos caminha os cinco a seis metros de distância até lá. Vai agora explicar o que é aquele outro conjunto complexo de buracos, por sinal descoberto ainda antes do local de enterramento decorado com os ossos na parede.

Grande complexo funerário

Há um fosso, ou corredor, que dá acesso a várias câmaras funerárias colectivas (ou hipogeus, como lhes chamam os arqueólogos). Helena Santos pensa que o corredor, aberto por cima na escavação arqueológica, estava originalmente coberto: "Há socalcos, que podem ter servido para apoiar uma estrutura de madeira."

Desçamos ao fosso. Uma pessoa cabe lá dentro e ainda sobra terra para cima. Se percorrermos os quatro metros de comprimento já escavados, vamos dar a duas câmaras funerárias colectivas. Os homens do Calcolítico escavaram-nas na rocha mole, com uma forma circular e cerca de três metros de diâmetro, e fechadas por cima no início.

Numa das câmaras não se encontraram ossos (talvez até nem tenha servido para enterramentos), mas na outra mesmo ao lado já se tiraram pelo menos 40 indivíduos, tantos quanto o número de crânios que foram surgindo à medida que se escavava. Aqui, vêem-se os ossos amontoados no centro, com muitos ainda ligados entre si. De roda deles andam Raquel Granja, antropóloga, e Fátima Nunes, arqueóloga. Enquanto esta escreve números em papelinhos, aquela cola-os ora neste osso, ora naquele. Setenta e um papelinhos depois, está na altura de fazer fotografias do sítio, com um aparelho que marca ao mesmo tempo as coordenadas geográficas, para que tudo fique registado ao pormenor.

"O estado de conservação do material é muito bom. Até ao momento, não tinha aparecido em Portugal uma coisa do Calcolítico como esta, com tantos indivíduos", vai dizendo Raquel Granja, empoleirada numa trave de madeira por cima dos ossos a colar os papéis.

Inicialmente, chegava-se à câmara funerária que se vê repleta de ossos apenas através do corredor, que desembocava em duas pequenas entradas. "Alguns ossos foram afastados para a colocação de outros indivíduos. Não era depositada terra", explica Raquel Granja. Ao lado dos mortos, deixavam peças de cerâmica.

"Há-de ter chegado uma altura em que o hipogeu ficou cheio e a solução foi abrir um buraco por cima e fazer os enterramentos pelo topo, em vez de vir pelo fosso", acrescenta Helena Santos. "Quando deixaram de conseguir pô-los pelo fosso, as entradas foram fechadas com pedras. Uma coisa curiosa é que nessas pedras havia um búzio e seixos pretos: podia ser um ritual de encerramento."

O corredor terá dado acesso a pelo menos mais duas câmaras funerárias. Estão por escavar, mas há indícios da sua presença no corredor: numa das eventuais entradas, existem as pedras de encerramento da câmara, ossos humanos queimados e um copo de cerâmica; e na outra, uma deposição de ossadas humanas desarticuladas. "O Calcolítico é um período mal conhecido em Portugal. É interessante perceber a forma como tratavam os mortos", sublinha Raquel Granja.

Portanto, o corredor terá conduzido a pelo menos três ou quatro câmaras funerárias colectivas. Suspeita-se, no entanto, que se prolonga terra adentro, para lá do que está escavado.

As obras do Alqueva já permitiram a descoberta de hipogeus noutros locais do Alentejo, sobretudo na zona de Serpa (até há cinco anos, estes sepulcros colectivos escavados na rocha, do Neolítico final e Calcolítico, conheciam-se apenas no litoral do país, enquanto no interior se encontravam soluções de enterramento do tipo das antas). Mas estes hipogeus de Ferreira do Alentejo têm um aspecto inédito: foram construídos a partir da parede de um corredor e encontram-se todos interligados. "É um grande complexo funerário", resume Helena Santos.

O corredor e as suas câmaras funerária não estão fisicamente ligados à "capela dos ossos" pré-histórica, embora toda a área tenha sido utilizada em rituais funerários. Porquê construir ali uma necrópole?

Porque nas proximidades havia um povoado pré-histórico - Porto Torrão, descoberto em 1981 pelo arqueólogo José Morais Arnaud. É o maior povoado calcolítico de Portugal, que tem a apenas 900 metros dali um dos enormes fossos que o rodeavam por completo.

Os homens do Calcolítico viviam em comunidades já sedentárias. Eram agricultores e pastores, mas também caçadores-recolectores. Seria Porto Torrão, com os limites mal conhecidos, uma aldeia? Ou um ponto de encontro de várias comunidades de um território vasto, já que os seus fossos circundantes têm grandes dimensões, que se reuniam periodicamente em Porto Torrão como um espaço simbólico e sagrado? E por quanto tempo depositaram os seus mortos na necrópole? Será que ela fazia parte de um sistema de fossos de Porto Torrão? Que doenças tinham? De onde vieram esses homens? Ou o que comiam? Muitos mistérios, que mais escavações, datações de materiais e estudos aos ossos poderão desvendar.

E a vala da destruição

Helena Santos, Raquel Granja e Fátima Nunes estão no último dia de escavação, que ficará interrompida por uns tempos (estão a discutir-se os termos da continuação dos trabalhos, incluindo a lentidão e questões contratuais, explicaria mais tarde António Valera, director do núcleo de investigação arqueológica da Era).

Sabem que o destino de parte do complexo funerário está traçado. A câmara funerária de onde se retiraram os 40 indivíduos e a "capela dos ossos" pré-histórica ficam mesmo no caminho das condutas de rega, pelo que, se os planos da EDIA não forem alterados, vão ser destruídas. Ossos e restantes achados serão removidos, para que a máquina passe por cima dessa parte do sítio arqueológico, conhecido por Monte do Carrascal 2.

"Essa é a parte triste. Estão à espera que se façam os registos e a recolha dos materiais no sítio onde vão pôr as tubagens", diz Helena Santos. "Quando vamos fazer uma escavação em contexto de obra, sabemos é para tirar a informação, para a obra continuar. Vamos ficar com este sítio um bocadinho truncado." Talvez por saber isso, a arqueóloga não se canse de usar a sua máquina fotográfica. "Vou com quatro mil e tal fotografias."

Por instantes, olhemos a planície ao longe. Acima dos telhados de Ferreira do Alentejo, sobressaem os ciprestes.

Sugerir correcção