Perderam-se as fábricas do têxtil e o fio condutor da região

Quem segura o vale do Ave, agora que a teia do têxtil se rompeu? Sociólogo que estudou a região flagelada pela crise responde: é o Estado, com as prestações sociais. O problema é que o desemprego se tornou numa forma de emprego. Por Samuel Silva (texto) e Paulo Pimenta (fotos)

a O grande relógio à entrada da fábrica marca 8h. Desde 2001 que está parado, quando este gigante faliu. Aqui funcionava a Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela, em Vila das Aves, que chegou a empregar mais de três mil pessoas. Mas nos nove quilómetros quadrados de área que a empresa ocupou já só restam as paredes e as carcaças de algumas máquinas. Esta já foi uma das maiores empresas têxteis da Europa, mas não resistiu à chegada do novo século. Como esta, há milhares de histórias de empresas encerradas no vale do Ave, centenas de paredes vazias a denunciar que o presente foi demasiado pesado para esta região.

Como o relógio da velha empresa, o Ave é uma região parada. A indústria desapareceu aos poucos e sobrou uma taxa de desemprego histórica. Por aqui vivem-se tempos de "desfabrilização", concluiu o sociólogo Esser Jorge, numa investigação realizada na Universidade do Minho (UM) ao longo do último ano.

"As últimas duas décadas foram de crise para o têxtil, com a entrada em vigor do euro e a abertura dos mercados. De repente, a mais-valia que esta região tinha para oferecer, que eram os baixos custos da mão-de-obra, deixou de existir, aponta o investigador. Quase todas as grandes empresas, com mais de mil trabalhadores, desapareceram primeiro e com elas as pequenas fábricas familiares que delas eram subsidiárias.

O sociólogo usa o termo "desfabrilização", em vez de "desindustrialização", porque considera que, na região, nunca houve uma verdadeira industrialização. "Não houve um efeito de melhoria do tecido social, nomeadamente a nível escolar. As fábricas tiveram o efeito contrário: embruteceram os trabalhadores."

Esse embrutecimento do tecido social é, segundo o estudo, responsável pelo momento que se vive no vale. "Como não há escolarização, de repente não há solução para voltar a colocar estas pessoas no mercado de trabalho. Daí a taxa de desemprego ter crescido tão exponencialmente."

Fabricados na fábrica foi a tese de mestrado de Esser Jorge, defendida em Novembro, e que dará origem a um livro a publicar até ao final deste ano. O sociólogo deu um nome a uma realidade a que, por aqui, ninguém escapa. Toda a gente tem um amigo, um familiar, um vizinho que perdeu o emprego no têxtil nos últimos anos e que não vê perspectivas de o recuperar.

Viajar entre Guimarães e Santo Tirso, ao longo da EN105, é como caminhar entre cadáveres, observando as velhas fábricas a apodrecerem à margem da estrada.

Vácuo social

Para os operários o momento é de choque. "Após longos anos de trabalho rotineiro, estes indivíduos descobriram com horror que a sua utilidade tinha desaparecido, que a sua técnica era inútil e a sua experiência desapropriada", sublinha Esser Jorge. "Já não há mais as vidas orientadas para as fábricas. As pessoas não têm hoje a possibilidade de olhar para um emprego como se fosse o fio condutor das suas vidas", completa o sociólogo. Daí que fale de um "vácuo social", habitado pela população da região. A teia que a têxtil teceu, e que foi o suporte do Ave durante décadas, rompeu-se. E o futuro ainda é incerto.

Maria, 48 anos, viveu esse trauma. Desde os 13 anos trabalhou numa das maiores empresas da região, onde chegou a ter quase 1200 colegas. Conseguiu atingir uma posição de chefia, após mais de 30 anos de têxtil. Até que um dia a empresa entrou em colapso e foi despedida. "Foi uma surpresa, a maior surpresa que tive", conta. "Pensei que ia terminar lá a minha vida", contando que nunca tinha falhado um dia de trabalho por doença. Mas, com o desemprego, passou a precisar de medicação.

Luís tem 51 anos e uma história semelhante. Trabalhou desde os 12 na têxtil, passou três décadas na mesma empresa. Até cair no vazio. "Estar desempregado é mais cansativo do que trabalhar. Estou em casa e só tenho estas quatro paredes."

São situações difíceis de contornar, entende Esser Jorge. "Este tecido social que vem da desfabrilização dificilmente será requalificado, mas convinha que não continuássemos a olhar para este problema como se ele não existisse", critica. O mais difícil será encontrar a solução para quem anda na casa dos 40 a 50 anos. "Não acredito que se possa reformar estas pessoas em catadupa. Tem que haver outras soluções", defende o sociólogo da UM.

"Aos 51 anos dizem que sou velho para arranjar um emprego", conta Manuel, trabalhador têxtil desde os 11 e desempregado há três. Pedro tem menos dez anos de idade, mas a mesma angústia. "Como é que eu vou arranjar emprego, aos 41 anos?", questiona.

A escolaridade nunca foi uma ideia muito cara nesta zona do país. Entre a prática na fábrica e a escola, optava-se pela fábrica. "Havia a ideia de que a fábrica é que fazia um bom trabalhador. Ensinava-se a não gostar na escola", aponta Esser Jorge, que atribuiu também responsabilidade às elites do vale do Ave. "Houve uma grande falta de visão. Por exemplo, nunca houve uma verdadeira escola profissional e a região atrasou-se 20 anos na formação." Além disso, os sinais da crise não foram silenciosos: "Tudo acontece como se ninguém pudesse saber que isto ia acontecer, mas, quando olhamos para trás, percebemos que há muitos anos se via que isto poderia acontecer."

Desemprego galopante

A antiga Fábrica do Rio Vizela, nascida em 1845, encarna aquilo que a região vive. A empresa situava-se no coração do vale do Ave, junto da foz do seu afluente Vizela, na confluência entre os quatro concelhos mais afectados pela longa crise do têxtil. Guimarães, Santo Tirso, Famalicão e Vizela vivem dias de agonia, com uma taxa de desemprego na ordem dos 13 por cento.

Em duas décadas, a região passou do oito ao oitenta. O mesmo é dizer que chegou a viver uma situação de quase pleno emprego e hoje debate-se com taxas de desemprego mais altas que a média nacional. Em 1991, o peso dos desempregados na sub-região ultrapassava ligeiramente os três por cento. Dez anos volvidos, praticamente tinha duplicado, situando-se nos 5,6 por cento. E hoje, nas freguesias que compõem o coração da zona industrial, as taxas chegam aos 15 por cento.

Com um quadro de desemprego tão generalizado, há uma pergunta que se coloca: porque não há consequências sociais mais visíveis desta situação? "O Estado tem comprado bem-estar social", afirma Esser Jorge, apontando o aumento das prestações sociais canalizadas para esta população pela administração central e pelas autarquias. "Do ponto de vista do bem-estar das pessoas e da calma que proporciona à região, é uma boa opção. Mas há o reverso da medalha. O desemprego também se tornou uma forma de emprego", explica o sociólogo. Esta população habituou-se a viver com níveis de exigência baixos a nível salarial. Além disso, há uma longa tradição de complementaridade de rendimentos, que foi visível durante anos com a manutenção da agricultura, por exemplo.

E com o desemprego a aumentar, essa tendência reavivou-se, passando os subsídios do Estado a funcionar como "excedente salarial". "No vale do Ave há um número muito grande de pessoas que vivem numa economia paralela", denuncia o investigador, que diz ter encontrado diversos casos de desempregados que se dedicam à jardinagem ou ao trabalho doméstico de forma não declarada para conseguir manter a remuneração anterior à crise.

Diferenciação

É o caso de Ana, 20 anos, que vai no terceiro emprego não declarado. "Só fiz descontos para o primeiro patrão, durante meio ano", conta a jovem. Vai entrando e saindo de novos empregos a cada dois ou três meses e não consegue encontrar a estabilidade que procura. Mas esta geração jovem ainda é aquela que tem melhores oportunidades no vale do Ave. Pior está a geração a que pertencem os seus pais, pouco escolarizada e especializada numa indústria sem futuro.

Daqui em diante, a região já percebeu que o sector têxtil, tal como o conhecia, chegou ao fim. "Não viveremos mais daqueles grandes aglomerados que tinham 600, 1000, 3000 trabalhadores. Aquele têxtil que ficará é o de referência, que conseguiu introduzir tecnologia, que tem mais-valias que assentam na qualidade, na diferenciação", antecipa Esser Jorge.

Para recuperar, o vale do Ave tem que mudar. Como as fábricas se instalaram junto dos locais onde esta população vivia, nunca houve uma ideia de mobilidade. O emprego era ao pé da porta. Mas hoje é preciso mudar de paradigma. "As pessoas pressentem que não podem continuar a viver com a ideia de que o trabalho vai continuar ao lado de casa", acredita o sociólogo.

O futuro passa também por iniciativas como a do parque de ciência e tecnologia de Guimarães, o Ave Parque. "São iniciativas como esta que valem a pena. Não se baseiam na mão-de-obra, mas numa mais-valia desmaterializada", defende o investigador, que desconfia mais da capacidade da Capital Europeia da Cultura para regenerar Guimarães, a cidade líder da região: "Não me parece que o tecido social vimaranense alguma vez tivesse sido orientado para a produção cultural. Esse tecido não vai ser criado de um dia para o outro", avisa.

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