Quatro padres portugueses no Vaticano

Há vários padres portugueses a trabalhar no Vaticano ou em instituições católicas em Roma
Fotogaleria
Há vários padres portugueses a trabalhar no Vaticano ou em instituições católicas em Roma Rui Gaudêncio
Mário Rui de Oliveira
Fotogaleria
Mário Rui de Oliveira DR
José Ornelas Carvalho
Fotogaleria
José Ornelas Carvalho DR
José Bettencourt
Fotogaleria
José Bettencourt DR
Rui Silva Pedro
Fotogaleria
Rui Silva Pedro DR

Há um padre poeta que anda às voltas com o Direito Canónico. Outro que descobre que os imigrantes são a continuação da história intercultural de Roma. Um monsenhor que abre as portas a reis e presidentes para as audiências privadas com o Papa. E um padre que só não gosta do excesso de "água benta". O PÚBLICO foi conhecer quatro padres portugueses, entre os vários que trabalham no Vaticano ou em instituições católicas em Roma.

Mário Rui de Oliveira - A caruma e os pinhões

A praça junto do Panteão está apinhada nesta sexta-feira de sol, em Roma. O padre Mário Rui de Oliveira, de 37 anos, que trabalha no supremo tribunal da Igreja Católica, consegue, mesmo assim, ver pormenores escondidos: as cores das casas em volta, uma "edicola", o nicho com uma pintura de Nossa Senhora numa das paredes...


O café tomara-se antes, no Sant"Eustachio, onde se bebe um dos melhores cafés em Roma. Instantes depois, diante da sóbria grandeza do Panteão, símbolo da história da cidade, confessa que "há um Mário antes de Roma e um Mário depois de Roma". Não por acaso: a capital italiana está presente nos dois livros de poesia que publicou: Bairro Judaico e Vento da Noite (ed. Assírio & Alvim).

"Saio de casa para olhar o mundo", escreveu num poema. "Essa descoberta, esse desejo de olhar o mundo, é fruto de Roma. É reencontrarmo-nos com o que se deixa nestas ruas", diz, por entre grupos que tiram fotos, comem ou riem. Ou que apenas conjugam o verbo estar, neste princípio de tarde como só Roma oferece.

O padre Mário Rui vive entre a ordem do Direito Canónico e a desordem da cidade: "Mesmo no meio do caos e da agressão, Roma torna-nos atentos à santidade e à beleza." Por isso é possível ver toda a cidade fazendo percursos através das pequenas fontes ou da pintura de Caravaggio, sugere. "A caruma e os pinhões são um dom de Roma", escreveu, num outro poema.

"Estar na Piazza Navona, com o sol a bater nos edifícios de Borromini dá-nos a sensação de estar só com o que se ama, como se fosse só meu."

Sente vontade de voltar a publicar - talvez ainda este ano. "Com o volume de trabalho, a poesia é também salvação." Mas que trabalho é este? Mário Rui de Oliveira está desde 2007 na Assinatura Apostólica, o supremo tribunal da Igreja onde, por exemplo, aprecia pedidos de nulidade matrimonial.

Um modo de ajudar, diz o canonista. "Para alguém com fé, poder celebrá-la de novo e evitar o sofrimento pode ser importante." Recorda um casal que pediu a nulidade do casamento e teve resposta afirmativa, depois negativa em segunda instância. Teria que ser resolvido em Roma, com longa demora. O casal pediu para o caso ser apreciado em terceira instância em Portugal, para poupar tempo. A resposta foi positiva. "Está em execução e as pessoas estão livres."

Recuperar essas vidas "daria um grande romance". Como ir ao encontro das pessoas e perguntar "que vidas têm agora". Sobra tempo para sonhar esses sonhos ou para "passear, partilhar uma boa "pasta" e um bom vinho, participar na oração da Comunidade de Santo Egídio, rezar as vésperas na Capela Sistina com 50 ou 60 pessoas ou acompanhar um grupo de idosos e doentes que se correspondem com condenados à morte no Texas".

"Talvez as vidas sejam tocadas, mesmo que levemente, pelo sorriso de Deus", escreve em outro poema. "No meio do sofrimento, descobrir que Deus continua a sorrir e entra na vida das pessoas é criar uma alma", diz agora, diante do Panteão.

Rui Silva Pedro - Bairro de Trastevere, no meio do mundo

Roma não é estranha ao trabalho deste padre junto dos imigrantes - cabo-verdianos, em particular. "Tenho descoberto a dimensão intercultural da história da cidade, de uma religião que se sobrepõe a outra, das culturas que se cruzam..."


Desde que veio para Itália como conselheiro do superior-geral da sua congregação, Rui Pedro decidiu acompanhar de modo especial a comunidade cabo-verdiana. "É uma das mais antigas em Itália, constituída em 85 por cento por mulheres" - separadas, viúvas, mães solteiras, com filhos. "Muito emancipadas", diz este padre da Congregação dos Missionários de São Carlos Borromeu, ou scalabrinianos (do nome do fundador, Giovanni Battista Scalabrini).

Nem se via de outra maneira: além do apoio ao superior, guarda noites e fins-de-semana para imigrantes, sem-abrigo, gente desfavorecida. "Se não fosse assim, faltava-me a vida. Tenho que dar credibilidade ao que proponho."

Não é de agora esta vocação. Nascido em Peniche há 48 anos, Rui Pedro tem um irmão emigrado em Inglaterra e, quando estudante, o pároco viajava a países com emigrantes portugueses. Simpatizou com os padres scalabrinianos, por fazerem desse trabalho a sua missão.

Já padre, esteve em França, na fronteira com a Bélgica e o Luxemburgo, "onde nasceu a Europa". Foi responsável de um centro para imigrantes noSeixal, participou na legalização extraordinária de imigrantes e, em 2000, foi convidado a dirigir a Obra Católica Portuguesa das Migrações.

Em Roma, colabora em acções de formação bíblica, de apoio social, na organização de festas de imigrantes. Normalmente, circula pelo bairro de Trastevere, um dos mais conhecidos de Roma, onde conversamos. Restaurantes, artistas de rua, turistas de todo o lado, um sem-abrigo que passa, andrajoso e a cheirar mal, asiáticos a vender flores ou brinquedos, lojas da moda, tudo para aqui converge.

"A imigração e os problemas sociais têm aumentado muito no Sul. O voto italiano responde ao que o Governo está a oferecer, ligando a questão da insegurança à imigração."

Com as recentes alterações legislativas, alguém que seja apanhado em situação irregular, tenha ou não família em Itália, será expulso. Aos domingos, quando se encontra com imigrantes, Rui Pedro ouve histórias de gente que sofre. "Por isso posso criticar a política de Berlusconi para a imigração."

Sente-se contente por ter ajudado a que a imigração entrasse na agenda política - e na organização interna da Igreja, que em Itália é das forças mais empenhadas no tema. Fica frustrado pela incapacidade em "parar o tráfico humano" e por causa das leis securitárias europeias. "O facto de não se facilitar a imigração legal promove o tráfico e não reconhece o contributo económico destas pessoas."

José Bettencourt - Abrir as portas do Papa

Monsenhor José Bettencourt está perto do Papa (trabalha na Casa Pontifícia) e no centro do mundo - sente a cidade como tal, lugar onde se cruzam caminhos "intelectuais, artísticos, espirituais" (o título de monsenhor é concedido pelo Papa, como reconhecimento de determinados serviços). E, tal como Mário Rui de Oliveira, sente-se privilegiado por poder ir, quando quer, à Capela Sistina.


Nascido em 1962 em Velas de São Jorge (Açores), foi com a família para o Canadá quando tinha três anos. Ordenado padre em 1993, o arcebispo de Otava pediu-lhe, em 1995, para vir para Roma estudar Direito Canónico. Por aqui ficou, depois de ter sido convidado para o serviço diplomático da Santa Sé.

Começou em 1999, na nunciatura (embaixada) do Vaticano na República Democrática do Congo, onde assistiu à guerra civil e ao assassinato de Kabila. Foi parado duas vezes por militares. Tudo acabou bem, mas José Bettencourtficou impressionado com as "muitas necessidades" que viu.

Não tem dúvidas de que a diplomacia do Vaticano tem estes problemas como prioridade: "Defende os princípios da dignidade humana, da defesa da paz, da democracia e do respeito pelas organizações internacionais." A Cáritas Internacional, recorda, presta duas vezes mais assistência do que a Cruz Vermelha, mas a Igreja trabalha com "discrição", seja no Congo, no Haiti, no Chile ou em qualquer outro lugar.

Monsenhor Bettencourt trabalha na antecâmara do Papa desde 2007. Antes, estivera cinco anos na primeira secção da Secretaria de Estado do Vaticano, que trata das relações com os estados - e onde está outro português, monsenhor Ferreira da Costa. Agora, é ele ou um colega francês quem dá entrada para as audiências privadas - por exemplo, com o rei da Arábia Saudita ou o presidente do Vietname.

Nos corredores por onde circula, José Bettencourt tem a Praça de São Pedro a seus pés. Neste tempo após a Páscoa, Roma continua invadida por turistas. A praça não é excepção: autocarros estacionados, milhares aguardando vez para entrar na basílica ou ver o túmulo de João Paulo II.

A importância e a origem do serviço diplomático do Vaticano vem de longe: no livro dos Actos dos Apóstolos, São Pedro envia legados em sua representação. No século III, os papas enviavam mandatários com credenciais aos reis e às autoridades da Igreja. As primeiras nunciaturas foram estabelecidas em 1500, em Veneza e Paris, mas já antes havia relações com estados, incluindo Portugal e a Mongólia.

Hoje, o Vaticano tem relações com 178 países e 30 organizações internacionais. "Mas somos muito diferentes das outras representações diplomáticas: em países em que o povo sofre, a Santa Sé é a voz do povo."

José Ornelas Carvalho - Mãos na Bíblia e o espantono Panteão

O padre José Ornelas Carvalho, nascido em 1954 em Porto da Cruz (Madeira), gosta de Roma, do cruzamento de civilizações e movimentos de todo o género que aqui se vê. A cidade é "fácil de viver, é internacional, multicolor, mesmo dentro da Igreja". Mas também tem dificuldades: "Por exemplo, a impressão de "nadar" em água benta."


Numa das suas primeiras visitas como superior-geral dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, ou dehonianos (do nome do fundador, no século XIX, o francês Léon Dehon), José Ornelas esteve no Congo. Foi no pós-guerra civil e nada fácil: apanhou tifo e malária ao mesmo tempo, sentiu "o sofrimento e a dificuldade de poder ajudar". Teve que "aceitar que não se pode fazer tudo", vendo a fome e a miséria. "É uma realidade dramática onde se toca o mais doloroso da humanidade."

Padre desde 1981, José Ornelas decidira ser missionário. Ainda viu as revoltas dos musseques em Luanda, viveu a independência de Moçambique ("Vi depois o descalabro do sonho, os campos de concentração, as nacionalizações..."), acabando em Roma, em 1976, para se doutorar em Bíblia.

A "grande mudança" na sua vida foi, em 2003, a eleição para superior da congregação. "Tinha dito que não voltaria cá..." A formação bíblica levava-o a querer "sujar as mãos com a realidade de cada dia e a querer que o sonho inspire a vida". A Bíblia, a sua "raiz", não é "um livro escrito no passado, é um confronto da alma humana com Deus."

Como superior da congregação, vê o "perigo" de se viver a vida religiosa com mesa posta e sem problemas. "Temos que mudar. Um dos grandes temas da vida religiosa é a comunhão. As comunidades nunca serão perfeitas, mas temos que fazer da vida comunitária o centro do nosso estilo de vida."

Uma das experiências positivas que viu, nas visitas às comunidades dehonianas (metade do tempo como superior é para essa tarefa) foi a das comunidades terapêuticas para toxicodependentes no Brasil. Envolvem religiosos e leigos, ideia que sempre o acompanhou.

Roma, de novo. O pouco tempo livre é para ler. Quando vem alguém amigo, mostra o obrigatório: Vaticano, Coliseu, Fórum Romano, Capitólio, Ostia, os Colli Romani (os montes à volta de Roma)... Mas reconhece: "Gosto do espaço livre e da amplitude da Basílica de São Paulo. E olho sempre espantadíssimo para o Panteão, para deixar a emoção estética dominar-me."

Sugerir correcção
Comentar