Gaia, a Mãe Terra

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A salvaguarda do património natural, apesar da legislação, sofre sucessivos atropelos. São disso exemplo os PIN

Na mitologia grega, Gaia, Géia ou Gê é a personificação da Terra como deusa. Esta é também a razão pela qual as diversas ciências relacionadas com o estudo do planeta utilizam o prefixo ge. No mundo moderno, Gaia inspirou, entre outras, uma hipótese ecológica para a sustentabilidade do planeta, olhando-o como um simples organismo.

Vem isto a propósito do Dia da Terra [assinalado ontem]. Proposto em 1970 pelo senador norte-americano Gaylord Nelson, e celebrado em mais de 175 países, este dia foi instituído para levar o Homem a uma reflexão profunda sobre o planeta que habitamos. Este ano têm sido muitos e variados os desafios que a Terra nos tem imposto que podem - e devem - ser olhados como oportunidades para uma profunda reflexão. As movimentações das placas tectónicas originaram sismos em diferentes regiões do globo de repercussões incalculáveis; o vulcão adormecido e esquecido teimou em mostrar que está activo, as trombas-d"água, ciclones, tornados, chuvas torrenciais varreram e levaram construções precárias, algumas, outras exemplos de engenharia. Todos estes fenómenos podem mostrar-nos que o Homem, embora sendo uma espécie pensante, inteligente, inovadora e criativa, dominante e tecnologicamente poderosa, nada é perante os mecanismos naturais de auto-regulação do planeta. E é esta relação de forças Homem/planeta que muitas vezes esquecemos, imbuídos apenas na autocentralidade e superioridade, e orgulhosos da capacidade tecnológica que usamos e abusamos sem reflectir.

O planeta Terra formou-se há 4600 milhões de anos, a vida surgiu há 3800 milhões de anos e o género Homo apareceu há cerca de 2 milhões de anos. Foi necessário tempo para criar a complexidade de "ecossistemas" para permitir o aparecimento de formas de vida complexas e diversas.

Actualmente, a noção de tempo é outra. Parece que nunca há tempo. O progresso é medido pela velocidade de produção, de retornos económicos e costuma dizer-se que quanto melhor e mais rápido soubermos usar os recursos maior o progresso, maior o lucro. Estes conceitos tecnológicos e económicos que têm "guiado" a acção temporal do homem são precisamente o contrário do tempo geológico. Quanto mais rapidamente consumirmos as reservas naturais e a energia disponível, menos tempo deixamos à nossa sobrevivência. Esta é outra reflexão que este dia nos convida a fazer.

A partir da invenção da agricultura e da Revolução Industrial, o papel do Homem no planeta tem deixado marcas cada vez mais relevantes, algumas irreversíveis e de consequências imprevisíveis. Não adianta negar o evidente: a ânsia de desenvolvimento económico e a pressa em alcançar resultados levam-nos a explorar e a usar os recursos que levaram anos a formar-se. É uma verdadeira globalização com fins puramente economicistas que agravam a escassez dos recursos e a disparidade entre países. Nem os Objectivos do Milénio ou as Estratégias Globais de Conservação têm permitido a maior racionalização de exploração e solidariedade entre povos.

Em Portugal, temos falta de um plano estratégico global com indicações concretas do que é necessário fazer para conservar os recursos de forma sustentável e continuada. A salvaguarda do património natural, apesar da legislação, sofre sucessivos atropelos. São disso exemplo os PIN (Projectos de Interesse Nacional) apresentados como propostas únicas de desenvolvimento regional e promoção nacional, ou mesmo os projectos turísticos dos concelhos que, em nome da competitividade, inovação e atracção, lapidam áreas protegidas e alteram a paisagem. Há uma necessidade urgente de abordar o problema do ponto de vista global, de se estabelecer uma verdadeira interacção entre políticas dos diferentes ministérios: do Ambiente, Agricultura, Ciência e Cultura. Mas não nos enganemos: a sustentabilidade destas interacções só pode ser assegurada pelo conhecimento científico, passado e actual, que nos permite modelar ou predizer o futuro.

Portugal não tem sabido actuar e agir de forma estratégica e prospectiva. As colecções de história natural, registo do passado, base para os estudos actuais e modernos sobre as mudanças globais e mecanismos de regulação do planeta, estão esquecidas, subfinanciadas e agonizantes. Não é por falta de chamadas de atenção por parte dos investigadores nacionais, de publicações internacionais que se servem desses registos para dar respostas cada vez mais finas sobre a evolução do planeta. As colecções de história natural são verdadeiras bibliotecas, valiosas, únicas, porque algumas constituem o único testemunho de um passado que já não existe. O Estado anima-se em mostrar "obra", mas esquece-se de preservar as "suas" obras, o seu património, as suas memórias. Numa era moderna, tecnológica e digital, importa relembrar os desafios que ultimamente o planeta nos tem presenteado. Sem passado, não se constrói o presente nem se projecta o futuro. Precisamos de "humanizar" todo o desenvolvimento económico, científico e tecnológico. E é bom não esquecer: "Gaia é a personificação da Grande Mãe Terra, que dá e tira. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo". Saberemos nós compreender o alcance desta máxima da mitologia grega? Vice-reitora da Universidade de Lisboa

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