O ouvido de Oneohtrix Point Never é o seu melhor instrumento

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Os teclados estão no código genético de Daniel Lopatin: a mãe é professora de piano; o pai tocava sintetizadores nos The Flying Dutchmen

Diz que não é músico: chamem-lhe antropólogo. Daniel Lopatin, aliás Oneohtrix Point Never, mostra amanhã na ZDB a sua magnífica música de sintetizadores

Daniel Lopatin, ou Oneohtrix Point Never, é licenciado em ciências da informação, mas não precisava do título académico para ser um arquivista de excepção. Chamem-lhe isso, ou chamem-lhe "antropólogo" especializado em cultura pop,  só não lhe chamem músico. Mesmo que seja da sua autoria um dos pedaços de música mais sublimes de 2009, "Rifts", duplo CD que compila três álbuns, e que o pôs nas bocas de meio mundo "underground" - e também no palco da Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, amanhã.

"Há alturas em que me sinto mais um antropólogo, outras um alquimista, um misturador de coisas; outras ainda um produtor, alguém que pode guiar músicos a sério, um artista sonoro ou um punk. Raramente um músico. É louco porque sempre fiz o que faço e nunca pensei que alguém fosse prestar atenção", diz, ao telefone com o Ípsilon, a partir de casa, em Boston.

Em "Rifts", o "antropólogo" viaja por territórios até aqui malditos, como a new age, cruzando-os com a música cósmica de Klaus Schulze e outros exploradores dos sintetizadores como instrumentos de voo. Poucos álbuns puseram máquinas (falamos de música de sintetizadores pura) ao serviço da emoção desta forma. "Gosto de 'Rifts' porque funciona como uma viagem. Oferece uma vista geral sobre anos e anos de gravações. Soa-me mesmo bem", afirma Lopatin, que desde 2003 lança a sua música, maioritariamente, em CD-R e cassetes limitadíssimas. "Rifts" é o seu momento de maior visibilidade até hoje. Em Junho virá o segundo, "Returnal", pela reputada Mego.

É uma música nostálgica, que lembra bandas sonoras de filmes de ficção científica e os tempos em que os sintetizadores eram máquinas recentes capazes de construir futuros. Tempos em que Daniel, 27 anos, ainda não era vivo e a sua família residia em São Petersburgo, na Rússia, de onde emigrou para os EUA, em 1982. "Vivo fascinado com o período de tempo em que eu não existia, com a vida que a minha família teve que não tem nada a ver comigo. É um mistério para mim, nunca falamos muito sobre isso. Cresci a sentir-me como se tivesse sido adoptado porque cresci na América numa família de russos", revela.

Os teclados estão-lhe no código genético. A mãe é professora de piano, o pai tocava sintetizadores nos psicadélicos The Flying Dutchmen, de Leninegrado, nos anos 60. "Tudo o que sei em termos de harmonia foi a minha mãe que me ensinou. O meu pai também me influenciou porque era um 'rocker', tinha cassetes interessantes, música de fusão, tipo Mahavishnu Orchestra, coisas com muitos teclados".

O pai tocava o velho sintetizador Roland Juno-60 que se ouve em "Rifts" num restaurante russo algures no Massachusetts. "Via esse teclado desde miúdo e sempre me fascinou - coisa louca, com um painel em madeira, parecia uma nave espacial", descreve. "Roubei-o ao meu pai quando fui para a faculdade e nunca mais lho devolvi."

Somos todos DJ

Lopatin partilha com grupos como os Emeralds ou agentes solitários como James Ferraro uma nova postura no "underground". Depois de um início de década em que grupos como os Wolf Eyes ofereciam catarse em forma de ruído e outros recuperavam a folk psicadélica, a atenção deslocou-se para uma mistura de memórias da cultura popular em que tudo serve: genéricos e anúncios televisivos, ficção científica, discos new age, "hits" esquecidos da new wave. David Keenan, na "Wire", baptizou o fenómeno de "hypnagogic pop"; Simon Reynolds já tinha colado a etiqueta "hauntology" a manifestações inglesas análogas.

"Memory Vague", um DVD artesanal com música e vídeos de Oneohtrix Point Never, é um tratado desta estética. Lopatin desconstrói "samples" de Fleetwood Mac ou Chris de Burgh, retirando deles curtos retalhos que manipula até ficar apenas com um fantasma da canção original. "Eu e gente como James [Ferraro] estamos a aplicar abordagens musicais experimentais a todos estes dados. Todos se tornam bibliotecários. Está tudo no YouTube, podes encontrar tudo o que queiras escavar do teu passado - e também coisas que não conhecias. Crescemos com música feita com 'samples': hip-hop, música de dança, 'Discovery', dos Daft Punk", prossegue. "O que tens de ter é um ouvido". E dispara um slogan: "Em 2010 todos somos DJ. Os músicos são DJ e os DJ são músicos."
Lopatin fica satisfeito com o maior à-vontade do "underground" com a pop. "Quando era mais novo, e ia a concertos noise, experimentais e também pop, havia aquela ideia de que só se podia fazer uma coisa, Chegou a um ponto em que achei isso frustrante porque tudo me soava parecido. Queria aplicar tudo o que estava a aprender", recorda. Para além de Oneohtrix, está ligado aos projecto Games, fixado no soft rock e na pop dos anos 80, KGB Man, Infinity Window e aos Skyramps, autores de "Days of Thunder", outra pérola de sintetizadores de 2009.

Vestimos a pele de advogado do diabo: revolver o passado não conduz a um beco sem saída? "A música está a morrer. O que está a acontecer hoje é a prova disso", responde. "O que podes fazer é 'samplar', ler o passado e, se fores mesmo bom, mostrar algo que as pessoas não notaram na altura".

Não há ponta de tristeza no que diz: "Criámos um sistema em que só celebramos heróis musicais e ignoramos tudo o resto. Adoro Beatles e Jimi Hendrix, como toda a gente, mas também gosto de ouvir musica aleatória a sair de um carro numa rua ou um velho a tocar acordeão no metro. Essas coisas são importantes. Se esse sistema de heróis se desmoronar pode ser bom para a música. Podemos ter expectativas diferentes face à música e vivê-la de maneira diferente. Pode não ser uma coisa má se ela morrer".

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