Jorge Peixinho, memória de uma presença ausente

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Ao longo do fim-de-semana a revolução Jorge Peixinho é o programa em destaque na Casa da Música

Jorge Peixinho é a figura central do ciclo "Música e Revolução", que decorre este fim-de-semana na Casa da Música. Setenta anos depois do seu nascimento, qual é o significado do seu legado junto dos compositores da nova geração?

Considerado "o pai da vanguarda musical portuguesa", Jorge Peixinho (1940-1995) teve um papel revolucionário na aproximação da criação musical praticada em Portugal às mais avançadas correntes musicais europeias, até à década de 1960 praticamente desconhecidas entre nós. No ano em se comemora o seu 70º aniversário, a escolha de Peixinho como figura central do ciclo "Música e Revolução" da Casa da Música parece óbvia. Ao longo deste fim-de-semana, serão interpretadas algumas das suas obras e relembradas outras efemérides, como os 40 anos do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (criado por Peixinho em 1970) e os 50 do encontro entre o compositor português e Luigi Nono, em Veneza, através de um programa proposto pelo Remix Ensemble.

Peixinho marcou uma geração vítima do isolamento cultural imposto pela ditadura e, enquanto viveu, desenvolveu uma original acção criativa e cívica. Mas que significado assume a sua figura e o seu legado para a nova geração de compositores que já não o conheceu e se formou num contexto de abertura e de acesso relativamente fácil à cultura musical internacional?

Igor C. Silva (n. 1989), vencedor do Prémio de Composição Casa da Música/ESMAE 2009, conta apenas 21 anos, mas tem perfeita consciência da situação político-social portuguesa anterior ao 25 de Abril e da estagnação cultural que esta motivou. "Havia uma atitude conformista por parte de diversos músicos, mas não era o caso de Peixinho", diz. "As suas obras adoptam uma linguagem mais vanguardista influenciada por compositores como Boulez e Stockhausen. Realizou em Portugal um trabalho de divulgação extraordinário da música mais avançada da época, que teve repercussões também em compositores como Constança Capdeville, Emmanuel Nunes, Álvaro Salazar ou Clotilde Rosa."

A haver uma influência de Jorge Peixinho na actual geração, Igor Silva refere o legado da própria música e uma herança mais filosófica. "O seu trabalho mostra-nos como são importantes as convicções de um artista e que devemos caminhar olhando em frente, recusando a estagnação e as apatia." Sublinha ainda que "Peixinho é um exemplo vivo de um manifesto que proclama o desenvolvimento contínuo da música e da procura incessante de novas formas de expressão."

O primeiro contacto de Hugo Ribeiro (n. 1983) com a música de Jorge Peixinho deu-se ainda como aluno de composição. "Desde aí, o estudo da sua música tem servido de inspiração para o meu trabalho", diz o autor da ópera "Os Mortos Viajam de Metro", estreada há poucas semanas no São Luiz . "É sempre uma grande motivação ouvir a música de Peixinho e uma honra ter o seu nome perto do meu num programa de concerto." Hugo Ribeiro salienta também o "louvável trabalho do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, conservando a música do Peixinho viva e provando que aquela geração criou objectos artísticos visionários"
Vasco Mendonça (n. 1977), também ele autor de uma ópera recente apresentada na Culturgest ("Jerusalém", a partir do livro de Gonçalo M. Tavares), admira o facto de Peixinho ter produzido peças tão diferentes ao longo da vida. "Parece estar implícita uma espécie de ansiedade criativa que o impede de se instalar num modelo, de se calcificar como artista, uma insaciabilidade característica dos compositores fortes." Outra dimensão que o fascina "é a determinação, a crença absoluta na inevitabilidade dos caminhos que toma." Reconhece em Peixinho "o carácter heróico de uma extraordinária geração de irredutíveis", mas admite que os tempos agora são outros. "Talvez estejamos ainda a lamber as feridas desse heroísmo, mas não consigo deixar de sentir uma certa melancolia quando me apercebo da dificuldade que a minha geração ainda tem em assumir a multiplicidade, e sobretudo o vazio de grandes figuras que se seguiu", acrescenta.

José Luís Ferreira (n. 1973), compositor que tem dedicado grande atenção à electroacústica e à informática musical, chama a atenção para o facto de "demasiadas vezes se ter exaltado a personalidade de Peixinho, falando-se muito pouco da sua vasta obra", que caracteriza como "assistemática, ecléctica e sempre inesperada". "Nos últimos anos tenho trabalhado algumas das suas peças, nomeadamente as que utilizam meios electroacústicos, e verificado que representam um salto em frente na História, um salto de que só agora nos apercebemos", conta. "O seu pensamento da música como som antecipava o pensamento típico de criação musical dos nossos dias. Jorge Peixinho é como uma ponte entre o passado e este presente, que é nosso, mas que já na altura era o dele", diz.

Daniel Moreira (n. 1983), jovem compositor residente na Casa da Música em 2009, lamenta que Jorge Peixinho tenha morrido tão cedo. "É doloroso, se pensarmos que poderíamos ainda hoje contar com mais música sua, com a sua pedagogia e com a sua intervenção cultural e cívica, mas é mais doloroso ainda quando pensamos no seu amor pela vida, pela arte, pela descoberta, pela partilha de conhecimentos e sensações." No entanto, considera que o mais importante é a música, "na sua força e delicadeza, no seu lirismo e expressão intensa, na poesia dos sons, na magia da harmonia, no encantamento das ressonâncias." Por isso, parafraseia o título de uma das peças para piano preferidas de Peixinho ["Mémoire d'une Présence Absente"]: o legado do compositor é exactamente "a memória de uma presença ausente, ou de uma ausência presente."

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