Os Deolinda têm agora outra subtileza - que sairá sempre a perder, injustamente, perante o primeiro álbum
"Dois Selos E Um Carimbo" tem um fantasma a pairar sobre ele, "Canção Ao Lado". O primeiro álbum dos Deolinda, dois anos depois de editado, continua firme nos topes, inabalável. Ou seja, a Deolinda que reaparece agora, subtilmente diferente, andará a dar de caras, a cada passo, com o seu passado e isso não a beneficiará. Porque "Dois Selos E Um Carimbo" é o momento em que a Deolinda das romarias pouco católicas e dos amores com palito na boca deixa de sorrir com sorriso tão aberto, larga o casulo do romantismo (em parte, só em parte) e se faz a vida. Digamos que a catraia cresceu e a sua exuberância contagiante ganhou outra subtileza.
Afinal, tal como em "Canção Ao Lado", os Deolinda concentram-se no essencial, nas melodias e nas letras, nas canções narrativas com cenários habilmente construídos pelo guitarrista e compositor Pedro da Silva Martins - duas guitarras, o contrabaixo e a voz de Ana Bacalhau são tudo o necessário (até os violinos de "Ignara vedeta" surgem no refrão com justa, mas decisiva, discrição). Mudou, portanto, o tom. A melancolia parece mais real, menos magia de filtro cinematográfico ("Entre Alvalade e as Portas de Benfica") e o romantismo, que era todo sonho, cruza-se com o aborrecimento de uma vida adulta, mecânica ("Fado notário"). E é precisamente esse tom que cobre todo o álbum, mesmo que se ouçam os trinados de fado vadio e devidamente abastardado em "Quando janto em restaurantes" (desde há muito standard dos concertos dos Deolinda), mesmo se o diagnóstico humorado da nação prossiga, depois de "Movimento perpétuo associativo", com "A problemática colocação de um mastro" (que é o maior do mundo, ou talvez não) em ritmo de marcha popular.
Perante o seu fantasma, "Dois Selos E Um Carimbo" sairá sempre a perder. Porque é impossível repetir aquele primeiro impacto, aquelas personagens e melodias em estado de graça. O que é cruel para ele mas, sendo mera questão de contexto, não desmerece a Deolinda. De resto, como poderia, quando nos deparamos com coisas magníficas como "Não tenho mais razões"? A guitarra picada a bambolear, o contrabaixo a marcar a dança e um "senhor doutor faça qualquer coisa que eu já não tenho razões para me queixar" que nos ergue do sofá num ímpeto para seguir mais atentamente aquilo que definiríamos, sem mais, como uma "canção maior".