Temos de criar auto-estradas para a biodiversidade

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Miguel Araújo DR

As alterações climáticas irão perturbar animais e plantas já em situação de stress, diz nesta entrevista o biogeógrafo Miguel Araújo. Em Portugal, um novo clima poderá empurrar as espécies para outro lado. É preciso garantir que tenham por onde passar.

Na literatura científica sobre biodiversidade e alterações climáticas, há um nome português incontornável: Miguel Araújo, 40 anos, geógrafo com doutoramento em Biologia, é um dos autores mais citados mundialmente. O cientista divide a sua actividade profissional entre Madrid, onde é investigador principal no Museu Nacional de Ciências Naturais, e Évora, em cuja universidade lidera a cátedra de Biodiversidade Rui Nabeiro. A sua principal área de estudo é a modelação da distribuição das espécies num futuro climático diferente.

É possível já apontar efeitos das alterações climáticas na biodiversidade?

Já há bastantes evidências, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Há vários estudos que demonstram que há alterações nas datas de nidificação das aves, nas datas de floração das plantas, nas datas das migrações. Também há dados de alterações na distribuição de espécies. A tendência tem sido para a deslocação em latitude, para norte, no caso do hemisfério Norte, e em altitude, das regiões mais baixas para as regiões mais altas.

E as espécies que já não têm para onde ir?

Obviamente, se uma espécies sobe para norte e chega à costa Norte da Escandinávia, tem o mar à frente. Já não migra mais. A não ser que tenha capacidade de migrar para longas distâncias e eventualmente ocupar parte do território Árctico e da Gronelândia. É possível para algumas espécies, mas para outras não. Em altitude é o mesmo, as espécies alpinas sobem e chega uma altura em que não podem subir mais. Mas pior do que não poder subir mais é começarem a receber fluxos de espécies que vêm de baixo e que competem com elas.

É correcto dizer que as alterações climáticas actuais vão provocar muitas extinções?

As espécies que viveram há 20 mil anos, quando estávamos no pico do último glaciar, tiveram de se adaptar a um novo regime climático. Já se tinham adaptado antes, porque desde há dois milhões de anos que estamos em ciclos constantes de aquecimento e arrefecimento. Portanto, a fauna que temos hoje está historicamente preparada para este tipo de oscilações climáticas. Temos é de perguntar o que é que mudou desde há 20 mil anos para cá. A maior parte das populações nativas da fauna e da flora encontrase numa situação de extrema fragilidade. Nós ocupamos, com as nossas actividades, 35 por cento da área do planeta. Apropriamonos da produtividade primária bruta em 24 por cento. O que sobra para as outras espécies é obviamente menor do que há 20 mil anos. As suas populações estão frágeis, numa situação de stress, de perturbação.

Um segundo factor, que está associado ao primeiro, é que há 20 mil anos as espécies podiam movimentar-se em todo o território. Hoje, temos estradas, barragens, cidades, ambientes inóspitos, como a agricultura intensiva. Portanto, não são as alterações climáticas, consideradas de uma maneira isolada, que irão causar uma extinção em grande escala. As alterações climáticas são um elemento novo nessa equação.

De que dimensão pode falar-se em termos de extinções?

Na realidade, não se sabe. Uma extinção é algo muito difícil de prever. É o desaparecimento do último indivíduo de uma determinada espécie. Nós temos um conhecimento muito deficiente de quantas espécies há no planeta, não conhecemos exactamente a sua localização. Dada a nossa ignorância, é impossível propor um número ou uma percentagem. Podemos é fazer estimativas sobre quais as espécies que poderão benefi ciar ou vir a ser prejudicadas pelas alterações climáticas.

Por exemplo?

As espécies adaptadas a climas frios vão perder. As espécies adaptadas a climas subtropicais poderão perder, se a evolução for no sentido de uma maior aridez. As adaptadas a climas mediterrânicos áridos vão ganhar. As espécies adaptadas a regiões temperadas poderão ganhar também, porque são espécies que estão hoje um pouco por toda a Europa do Sul e Central. São espécies cosmopolitas, e que se espera que migrem para grande parte da Escandinávia.

Na Finlândia, os observadores de aves todos os anos regalam-se com as novas espécies que aparecem, vindas do Sul. As análises que temos feito indicam que a maior parte das espécies perde – a maior parte das espécies estudadas, não todas as que existem.

Que trabalho tem feito nessa área?

Compilamos a distribuição das espécies em mapas e relacionamos estatisticamente estas distribuições com parâmetros climáticos. [Depois] projecta-se essa relação estatística no tempo e no espaço, utilizando cenários climáticos. E vê-se em que medida é que essa distribuição tenderá a aumentar ou a diminuir e onde é que poderá aumentar ou diminuir.

E o que é que esta análise mostra para Portugal?

Mostra que há uma degradação das condições climáticas para uma grande parte das espécies de Portugal, que começa no Sudoeste do país, no Algarve, e que se vai expandindo para nordeste, gradualmente, até 2080-2100.

Que espécies são essas?

São aves, mamíferos, anfíbios e répteis. Basicamente, todos os vertebrados terrestres.

O que vai acontecer com essas espécies?

Isso é o que não estamos ainda em condições de dizer. Algumas das espécies que ocorrem no Sul da Península Ibérica também ocorrem no Norte de África, em ambientes nalguns casos mais áridos do que aqui. Não temos a distribuição destas espécies no Norte de África. Não conseguimos estudar a relação estatística que têm com o clima nessas áreas. Isso geranos projecções talvez demasiado catastrofi stas para algumas espécies que ocorrem no Sul. Mas só para essas.

De tudo o que está a dizer, ressalta uma grande incerteza...

Se se utilizar esse tipo de modelo para dizer que 30 por cento das espécies de Portugal e Espanha vão-se extinguir em 2050, é uma afirmação claramente abusiva. O que se modela são as perdas de qualidade climática para cada uma das áreas. Uma espécie poderá extinguir-se ou não, poderá migrar ou não, poderá adaptar-se ou não, em função de uma série de factores. Há incertezas ecológicas, que têm a ver com a resposta destas espéceis à degradação das condições ambientais, e há incertezas algorítmicas, que têm a ver com os diferentes modelos. Estamos a desenvolver modelos mais complexos para o lince, onde entramos em linha de conta com as alterações climáticas, a variação na disponibilidade alimentar, com simulações da doença hemorrágica viral e da mixomatose. Podemos aqui fazer cenários de extinção para a espécie.

E o que dizem esses resultados?

Temos resultados provisórios. Há uma degradação dos habitats no Sul da Península Ibérica, maioritariamente em função do clima. E haverá uma progressiva deslocação dessas condições para norte. A serra da Malcata estará no futuro em condições muito boas para albergar o lince.

Acha que o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) exagera nas suas conclusões sobre a biodiversidade?

O IPCC tem pouca informação para produzir projecções globais sobre a biodiversidade. Ainda não há nenhum estudo que analise os impactos globais na biodiversidade em relação às alterações climáticas. O IPCC compila os estudos que há para diferentes regiões, e depois extrapola para o resto do planeta. É o que é possível fazer neste momento, mas está longe do ideal.

Vale a pena fazer alguma coisa, ou é melhor deixar vir outra diversidade biológica para ocupar o lugar da que conhecemos hoje?

Outra diversidade biológica virá seguramente, mas não sei se estaremos cá para ver. A remoção da biodiversidade num sistema pode ser muito rápida, pode acontecer de um dia para o outro. A geração de biodivesidade é um processo mais longo, é um processo evolutivo, que dura regra geral mais de dois, três milhões de anos.

Devemos então preocupar-nos?

Como principais interventores e modificadores do planeta, temos uma obrigação moral, sobretudo para com os nossos filhos, de lhes deixar um mundo que é parecido com o que nós tivemos. Por outro lado, pelo princípio de precaução, não nos interessa modifi car muito o padrão com o qual co-evoluímos. Pode vir uma nova biodiversidade. Imagine que, por hipótese, fosse rápido. Será que esses novos tipos de vida nos seriam benéfi cos? Não há nenhuma garantia.

Na prática, o que poderia ser uma medida de adaptação para a biodiversidade?

A ciência tem de determinar quais as áreas que serão importantes para a biodiversidade no futuro. Uma vez que saibamos quais são, temos de determinar se as espécies serão capazes de chegar lá. Temos de pensar em corredores ecológicos para ligar as áreas em que elas estão hoje e onde elas estarão no futuro. Temos de criar auto-estradas da biodiversidade, que hoje não existem. Acontece que muitas das áreas que possam vir a ser auto-estradas da biodiversidade ou novas áreas a proteger estão a ser ocupadas por actividades económicas. Existe um confl ito evidente entre algumas medidas de adaptação das sociedades humanas às alterações climáticas e as medidas de adaptação necessárias à biodiversidade. Um exemplo paradigmático é o das barragens.

Sabendo como hoje já é difícil criar uma nova área protegida, não será impraticável essa ideia das auto-estradas da biodiversidade?

Estamos a falar de problemas de gestão, não é esta a minha especialidade. Passo a batata quente aos políticos. Nós [cientistas] podemos oferecer cenários. Não devemos substituirmo-nos aos políticos e dizermos o que eles devem fazer.

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