A bomba-relógio do capitalismo

Foto
Arnd Wiegmann/REUTERS

Em Portugal os desequilíbrios de rendimentos são maiores do que na maioria dos países europeus

Na semana passada perto de 5 mil accionistas da UBS manifestaram a sua fúria com os chorudos bónus dos gestores deste banco suíço, que passou por sérias dificuldades. Por cá, em 2009, ano de crise, os presidentes executivos de 17 empresas cotadas na bolsa receberam, em média, mais de um milhão de euros cada. António Mexia, da EDP, recebeu 3,1 milhões. Vários gestores de empresas onde o Estado participa ganham 20 vezes mais do que o Presidente da República.

Escandaloso, obsceno, quando tantas famílias em Portugal passam por grande dificuldades - acusam uns. Outros, pelo contrário, classificam de demagogia barata e de populismo a indignação face aos ganhos dos gestores. Argumentam que, se não forem bem pagos, os gestores vão para outro lado. E apontam a inveja como raiz da indignação.

Noutra perspectiva, faz-se valer que alguns desses vencimentos milionários apenas traduzem o cumprimento de contratos. Estes impunham certos objectivos, que foram cumpridos. E distingue-se entre empresas em cujo capital participa o Estado - onde seriam de admitir limites, porque é o dinheiro dos contribuintes que está em jogo; e empresas totalmente privadas - aí, o dinheiro é dos accionistas e, diz-se, ninguém tem nada a ver com a maneira como eles remuneram os seus gestores.

A subida vertiginosa dos ganhos dos gestores de topo é debatida há anos, sobretudo nos Estados Unidos. Peter Drucker, o grande mestre da gestão, considerava razoável que um executivo de topo ganhasse 20 vezes o salário médio da sua empresa. Ora, em 2000 os executivos das cem maiores empresas britânicas ganharam 47 vezes o salário médio dos trabalhadores. Em 2008 ganharam 81 vezes. E nos Estados Unidos, em 2008, ganharam 318 vezes o salário médio.

Drucker não era populista nem demagogo. E procurou melhorar a eficácia da gestão empresarial. A tendência para um brutal alargamento do leque salarial merece atenção, até porque se insere num movimento mais geral de cada vez maior desequilíbrio de rendimentos nas sociedades desenvolvidas. Isto acontece depois de o capitalismo industrial ter sido, até há cerca de 40 anos, um factor de democratização económica, transferindo para a classe média a maior parte dos antigos proletários. É uma inversão brutal.

A inversão é provocada por diversos factores. Os salários de parte dos trabalhadores dos países ricos sofrem a concorrência dos baixos salários dos países pobres. Numa economia do conhecimento vence apenas quem possui certas qualificações tecnológicas e de capacidade de raciocínio. Na actual sociedade mediática os profissionais conhecidos, os famosos (isto é, os que passam na televisão e na Net), tendem a ganhar muitíssimo mais do que os outros. E, com Bush, os impostos favoreceram os ricos.

Não se tem dado suficiente importância aos efeitos sociais e políticos deste crescente desequilíbrio nas sociedades modernas. As quais tendem a estratificar-se, com os ricos a trabalharem e viverem em circuito fechado, sem contacto com os pobres. Lembra o que se passava antes da revolução industrial, com a rígida separação de classes então vigente.

Até onde se manterá a coesão social de sociedades cada vez mais desiguais? Até quando a classe média americana irá tolerar o seu empobrecimento relativo face aos ganhos fabulosos de alguns grupos? Este é um problema político de primeira grandeza, que Obama não desconhece.

No caso dos gestores, a presente disparidade salarial retira legitimidade ao capitalismo. O que parece não preocupar os gestores milionários, convencidos de que, depois do colapso do comunismo, tudo lhes é permitido. Daí escândalos como o da Enron e as loucuras financeiras que levaram à crise (o banco Goldman Sachs é agora acusado de fraude). Ou a chocante falta de sensibilidade social de alguns banqueiros salvos da falência com o dinheiro dos contribuintes americanos e britânicos, e que não tiveram vergonha de vir depois embolsar bónus astronómicos.

Em Portugal os desequilíbrios de rendimentos são maiores do que na maioria dos outros países europeus, o que é razão adicional para nos preocuparmos com a autêntica bomba-relógio que as economias de mercado estão a fabricar. E há, sobretudo, uma razão ética para não aceitar estas desigualdades. Mas parece que a ética caiu em desuso em largas faixas das nossas sociedades.Jornalista (franciscosarsfieldcabral@gmail.com)

Sugerir correcção