Como nasceu o lobby pelo casamento entre homossexuais

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Luís Grave Rodrigues, 52 anos, ofereceu-se, em 2005, para defender "quem quisesse casar-se" Miguel Manso

Um pequeno advogado de Odivelas. Duas mulheres até então anónimas que viviam em Aveiro. Esta é a história de uma acção de lobby que em Portugal abriu caminho à tese de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo não era inconstitucional, Por São José Almeida

Quando, em 2005, escreveu no seu blogue Random Precision em defesa do direito dos homossexuais a casarem-se civilmente, Luís Grave Rodrigues não sabia as consequências que aquele post teria. Nem tinha consciência que seria a sua acção como advogado que iria dar origem à criação de jurisprudência constitucional que serviria de almofada jurídica à legalização do casamento civil entre duas pessoas do mesmo sexo.

Na altura, aliás, as suas ideias foram debatidas apenas no círculo de pessoas que com ele conversavam na Net. O casamento entre homossexuais em Portugal era uma discussão quase marginal que estava limitada a alguns intelectuais e à luta das associações LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgénero). Estávamos, portanto, a anos-luz da realidade actual.

Há uma semana, o Tribunal Constitucional (TC) pronunciou-se sobre a lei, aprovada em Janeiro pelo Parlamento, que legaliza o casamento civil entre homossexuais. E considerou-a constitucional. Hoje, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é irreversível.

Como é que tudo começou? Quis o acaso que uma jornalista do Jornal de Notícias ao fazer uma pesquisa na Net sobre casamento entre homossexuais fosse parar ao blogue de Luís Grave Rodrigues, 52 anos. A 7 de Dezembro de 2005, recorda o próprio, foi publicado um artigo onde se contava que havia um advogado "que queria defender quem quisesse casar-se".

Pouco depois, Grave Rodrigues foi contactado por duas lésbicas assumidas, Teresa Pires e Helena Paixão, que viviam na zona de Aveiro. Queriam oferecer-se para serem o casal que viria a personalizar a campanha que suscitaria o debate jurídico-constitucional sobre o assunto.

Nascia assim um movimento que envolveu associações LGBT, um conjunto de juristas e especialistas da academia. E que funcionou como pressão sobre os partidos políticos. Esta é a história de uma acção de lobby político. Bem sucedida.

"Sou maluco"

Foi a filha de Helena, Marisa, hoje com 16 anos, que leu o artigo do Jornal de Notícias e que tratou de arranjar o telefone de Luís Grave Rodrigues. "Ela sabia que o nosso sonho era casar", recorda Teresa Paixão, 33 anos.

O primeiro encontro entre o advogado e as duas clientes foi no Hotel Íbis da José Malhoa, em Lisboa, num dia em que Teresa Pires foi visitar a filha bebé que vivia em Almada com a avó - à época, Teresa estava a divorciar-se e a lutar pela tutela da criança. Acabou por consegui-la e Beatriz, que tem hoje 10 anos, vive, há um ano e meio, com as duas mães.

"Perguntei-lhes se eram malucas por quererem fazer isto, elas disseram que sim e eu disse: "Então vamos a isto, que eu também sou maluco"", recorda o advogado. E foram.

Tanto Teresa e Helena, actualmente com 39 anos, como Luís garantem que os riscos foram clarificados de parte a parte. O advogado explicou que ia envolver a comunicação social, que o processo passaria por uma série de fases e que haveria desgaste e impacto público. "Ainda as alertei para o que iriam perder, mas elas responderam: "Prejudicial? Há dias, quando íamos a passar, o jardineiro da igreja atirou-nos água, pior não há.""

É certo que nem Luís nem Teresa e Helena previam o efeito avassalador que a decisão de irem tentar casar-se na 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, no dia 1 de Fevereiro de 2006, teria sobre a vida das duas. "O Luís Grave explicou tudo sempre, o processo jurídico, que ia convocar a comunicação social... E nós sempre dizemos que se era para entrar nisto, era para ir até ao fim, até ao TC e ao Tribunal Europeu", conta Helena. Mas admite: "Na conservatória, quando vimos os jornalistas é que começámos a perceber. Tremíamos como canas verdes. Nunca pensámos que o impacto seria tão grande, nem mediaticamente, nem nas nossas vidas", assume Helena. Teresa desabafa: "Nós queríamos casarmo-nos, o resto, a luta o impacto, não me ocorreu, por isso ainda hoje digo que não sou nenhuma bandeira."

Com a casa às costas

O que é facto é que quando voltaram a Aveiro, depois de o caso estoirar na comunicação social, esperava-as o primeiro episódio de uma campanha homofóbica a que dizem não deixaram de estar sujeitas. "Depois de Lisboa, quando chegámos a Aveiro, tínhamos uma coroa de flores à porta e a GNR ficou a vigiar-nos. Isto porque um jornal publicou o nome da terra onde vivíamos", lembra Teresa.

Deixaram Aveiro, foram para Lisboa, arrendaram casas, mas acabaram sempre por ter de sair. "Chegaram a viver em minha casa uns tempos e quando foram embora, não interessa para onde, a Marisa ficou comigo e com o meu filho uns tempos", relata a cineasta e activista das Panteras Rosa, Raquel Freire.

Desde então não têm parado. Trabalhavam por conta própria, deixaram de ter clientes. Emprego? O máximo que conseguiram, contam as duas, foi ficar 15 dias seguidos no mesmo sítio - quando Helena trabalhou numa bomba de gasolina. "Quando percebem quem somos, despedem-nos."

Têm vivido da solidariedade de amigos e de activistas dos movimentos LGBT, saltam de terra em terra, ficam sempre pouco tempo. Agora, vivem algures no Alentejo - não quiseram revelar a morada exacta ao P2. A última mudança, há cerca de um mês e meio, só conseguiu ser feita através de uma recolha de fundos no Facebook.

Sobrevivem com o rendimento social de inserção. Helena recebe 155 euros. Teresa outros 180, mais uma pensão de alimentos de Beatriz de cem euros "que nem sempre vem", nas palavras de Helena. Um total de 450 euros para duas mulheres e duas crianças.

Mas não se arrependem e garantem que assim que a lei entrar em vigor querem casar-se na mesma conservatória. "Querem lá estar no dia em que a lei entrar em vigor às 9h30 da manhã", precisa Grave Rodrigues com um sorriso.

O conservador amigo

"Percebi, desde o início, que podia e ia criar jurisprudência", conta o advogado. "Fi-lo porque o assunto era do ponto de vista profissional desafiante e estava convicto de que tinha razão, por isso me envolvi e as envolvi a elas." E desabafa: "Até porque um processo destes custou-me dinheiro."

Com a luta a chegar ao fim, Grave Rodrigues aceita revelar como conduziu o processo. "Sabia que era um pequeno advogado de Odivelas a lutar contra o TC, por isso sabia que só com a comunicação social do meu lado a falar do assunto faria com que os juízes-conselheiros olhassem para o meu pedido."

Mas a táctica de combate não ficou por aí. "Decidi também que deixava de falar em homossexualidade e que falava de pessoas, da Teresa e da Helena, e isso personalizou a questão e chamou a atenção."

Já a razão por que escolheu a 7.ª Conservatória é simples: "Sou amigo do conservador e ele aceitou aturar o assunto e o circo mediático." Quanto ao despacho negativo que acabou por dar, recusando casar Teresa e Helena, Grave Rodrigues limita-se a dizer: "Era a opinião dele." E explica por que foi necessário a exposição pública do casal e a ida à conservatória naquele dia 1 de Fevereiro de 2006. "Eu sabia que para levar o processo até ao Tribunal da Relação, ao Supremo e ao Constitucional tinha que ter algo de que recorrer. Por isso, criei uma situação que provocou aquele despacho do conservador para poder recorrer dele com base na inconstitucionalidade do artigo 1577.º do Código Civil" - que basicamente definia o casamento como "um contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente".

A recusa do conservador foi confirmada pelo Cível a 14 de Março. Seguiu-se o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (21 de Abril) e, já em Fevereiro de 2007, para o Supremo Tribunal de Justiça. A 25 de Maio de 2007, chega a vez do esperado recurso para o TC - que se pronuncia, por fim, a 9 de Julho de 2009.

Três dos cinco juízes-conselheiros que analisam o assunto defendem que o reconhecimento do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo não é obrigatório pela Constituição, como Luís Grave sustentava. Mas todos estão de acordo em relação a um ponto: também não é inconstitucional. Competia ao poder político decidir e legislar sobre o assunto.

Ciente que mesmo que tivesse ganho a sua acção o problema não ficaria resolvido - só ao terceiro acórdão sobre casos concretos é que seria obrigatória a mudança da lei -, Luís Grave Rodrigues afirma que o voto favorável de dois dos cinco juízes-conselheiros daquela secção do TC mostrou que a sua tese de que Teresa e Helena tinha o direito a casar-se "não era um disparate".

Grave Rodrigues lembra que passou 30 dias, "de 19 de Setembro a 19 de Outubro de 2007", ao computador em casa, a trabalhar nas alegações que entregou ao TC antes do acórdão final: "O meu sócio ficou sozinho com o escritório e trabalhei 20 horas por dia. Ia três ou quatro horas à cama, não por sono, mas por que sentia areia nos olhos." Mas relativiza: "Quem de facto sentiu isto na pele foi a Teresa e a Helena. Se alguma contribuição eu dei, foi conseguir essa abertura jurídico-constitucional para o processo legislativo que é dado por aquele acórdão do TC."

De facto, a 8 de Janeiro deste ano, o Governo apresenta e aprova a proposta de lei que consagra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Presidente da República pede depois a fiscalização preventiva da lei. E quando o processo chega ao TC já existia então um acórdão que afirmava, preto no branco, que a legalização era uma decisão política e não era inconstitucional.

Insistindo em não ficar sozinho na fotografia daquilo que considera uma vitória, Grave Rodrigues sublinha também a importância da ajuda que recebeu de especialistas do meio académico, bem como de activistas LGBT. Isto porque, quando, há cerca de três anos, anunciou que ia para o TC, foi contactado pelo dirigente da ILGA Paulo Corte-Real, que lhe perguntou se queria pareceres pró-bono.

"Encontrei-me com um grupo na Lusitânia para almoçar onde estavam os especialistas que deram pareceres [Carlos Pamplona Corte-Real, Susana Brasil de Brito, Pedro Múrias, Margarida Lima Rego, Luís Duarte d"Almeida, Isabel Mayer Moreira, Miguel Vale de Almeida] e outros que ajudaram a fazer o recurso, alguns dos quais ainda hoje não querem aparecer publicamente. O parecer de Júlio Machado Vaz foi o único que pedi por telefone", conta. "Sentei-me, expliquei-lhes o que estava a escrever e pedi-lhes: "Ajudem-me." Para que fosse útil, para que fosse eficaz, não podia entregar qualquer porcaria no TC. E pessoas desta categoria deram-me os pareceres que serviram de pilar à construção das alegações, deram-me a visão de pormenor e de conjunto."

Nesse almoço, e autora de um desses pareceres que fizeram história, esteve Isabel Mayer Moreira, professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Lisboa. "Eu, nas minhas aulas e nos colóquios, defendia esta minha posição, não tinha era acesso ao microfone. Quando me foi dada a oportunidade de fazer um parecer pró-bono, não hesitei, evidentemente sabendo que teria repercussões mediáticas." Estava perfeitamente consciente de que participava numa campanha para criar o respaldo constitucional ao avanço do processo político e legislativo.

"Tinha a convicção de que o TC não acolheria o meu parecer, que os juízes-conselheiros não diriam todos que é obrigatório reconhecer o direito ao casamento, que o TC não iria nesse caminho maximalista, mas sabia que o acórdão calaria a voz dos católicos que diziam que era inconstitucional." E remata: "Sei que contribuí para tornar claro que não era inconstitucional. Claro que não resolvi o problema daqueles dois seres humanos, mas a acção deu consistência jurídica à posição dos partidos." E, "quando José Sócrates anunciou que ia colocar esta questão no programa" de governo, sentiu que "depois de mais de uma década de luta o casamento entre pessoas do mesmo sexo ia ser possível em Portugal".

Associações desconfiaram

Além dos especialistas do meio académico, esta luta ganhou também o apoio das associações LGBT. Mas estas, ao princípio, olharam desconfiadas para Teresa Pires e Helena Paixão, bem como para a iniciativa de Grave Rodrigues.

Paulo Corte-Real, hoje presidente da ILGA, e na altura dirigente, afirma que a associação sabia que "o impacto iria ser importante". Mas esclarece que as associações não estavam muito entusiasmadas com a ideia inicialmente, porque consideravam que, "para lutar contra o preconceito homofóbico, era mais eficaz que o processo fosse feito por via política e não por via judicial". Afinal, conclui agora, os dois processos foram complementares e esta foi uma acção muito importante e teve impacto muito positivo".

Sérgio Vitorino, activista das Panteras Rosas, embora reconhecendo o mérito e o sucesso da acção, não esconde que não concordou com ela: "Sem dúvida que contribuiu para resolver a situação. Mas no início houve um momento em que se achou que seria prejudicial." E explica que então "havia pessoas muito envolvidas na luta pelo casamento que defenderam que elas deviam desistir".

Apesar de não ter sido apoiante da acção, Sérgio Vitorino percebeu desde cedo o problema humano que ali se colocava. E considera que o casal podia ter tido mais apoio, já que "a solidariedade inicial não durou muito" e elas acabaram por ser "abandonadas à sua sorte". Mas à distância reconhece que o que mais o surpreendeu "foi serem pessoas tão vulneráveis materialmente". E acrescenta: "Olhando para trás, percebo que tinha de ser assim. Se fosse um activista ou alguém com maior estatuto, teria mais a perder."

Até 28 deste mês Cavaco Silva deverá promulgar a nova lei. Ou vetá-la. Se a opção for o veto, o diploma volta ao Parlamento para ser de novo aprovado, após o que a assinatura pelo Presidente é obrigatória.

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