Arremessos contra a história

Foto
PIERRE-PHILIPPE MARCOU/AFP

A Espanha vive horas convulsas. A próxima suspensão cautelar do juiz Baltasar Garzón devido ao seu processamento por ter assumido competências que não tinha na investigação dos crimes do franquismo radicalizou o país. No encadeamento dos factos, também não é indiferente que a queixa aceite pelo Tribunal Supremo que coloca o juiz no banco dos réus seja formulada por organizações de extrema-direita. Com tais elementos, a crispação está servida.

Foi em Dezembro de 2007 que foi aprovada pelo Parlamento a Lei de Memória Histórica, uma iniciativa anunciada por Rodriguez Zapatero como redentora do esquecimento a que estavam votados os vencidos da Guerra Civil. O anúncio animou os familiares que há muito procuravam os restos dos seus para os enterrarem com dignidade. A promessa, mobilizadora do voto de esquerda, não foi cumprida. Fruto das negociações parlamentares, a lei foi descafeinada. Em aspectos essenciais. Não anulava as sentenças dos Conselhos de Guerra franquistas temendo o pedido de indemnizações. E o Governo não assumia as investigações dos casos, limitando-se a colaborar. Foi, então, que as associações recorreram a Garzón que, em Outubro de 2008, se declarou competente para investigar o desaparecimento dos opositores do franquismo entre 1936 e 1975, enquanto vítimas de crimes contra a Humanidade.

Garzón viria a abandonar o caso pela oposição do Ministério Público baseada em três argumentos. Os autores dos crimes, Franco e 34 colaboradores, já tinham morrido, pelo que não havia consequências penais. A tipificação de crimes contra a Humanidade não existia aquando do cometimento dos actos. Por fim, a lei de amnistia de 1977 amnistiara os crimes do franquismo.

Esta última consideração levou a novos desenvolvimentos. Sectores da esquerda caíram na tentação de reescrever a história. Puseram em causa a amnistia de 1977, na verdade o culminar de um processo de amnistias parciais iniciado em Novembro de 1975, aquando da proclamação de Juan Carlos como rei. Considerada, mesmo, como a versão espanhola de uma lei de ponto final. Quando, no verbo de protagonistas da transição democrática, entre os quais Santiago Carrillo, a amnistia era o princípio necessário à reconciliação nacional. Um perdão mútuo com objectivos de futuro. O primeiro foi a Constituição de 1978, a primeira aprovada pela maioria das forças políticas espanholas.

O legítimo direito dos familiares das vítimas enterrarem os seus com dignidade não legitima os arremessos contra a história.

Sugerir correcção