Racional, gestor, tímido, barítono: Pedro Passos Coelho é um líder natural

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Relvas lembra que sempre lhe disse: "Tu, um dia, vais ser líder do PSD" DANIEL ROCHA

Usa a voz, a pose e as ideias controversas para se afirmar, e é, dizem os amigos, um gestor: sabe transformar os defeitos em qualidades. Vêem nele um líder natural

Ele é forreta. Nisso os amigos estão de acordo. É agarrado ao dinheiro. Não à maneira de Manuela Ferreira Leite, que era a "dona de casa". Ele é mais do género de ir para a farra com os amigos. Já tinha esse hábito nos anos 80, quando era líder da JSD. Iam para a Adega do Ribatejo, no Bairro Alto, comer e beber até às tantas. Ele e Miguel Relvas e outros companheiros, nem todos da política. Gastavam o dinheiro todo e depois não chegava para o táxi. Iam para casa a pé. Mas valia a pena. Passos conversava muito, comia sopa de cenoura com feijão, bebia vinho tinto e cantava o fado. Por vezes à desgarrada, com outros cantores da fauna local, como era o caso de Quinzinho de Portugal, de quem ainda hoje é amigo. Tal como é ainda amigo de Relvas e dos outros. Era uma época de pândega, mas também de uma maneira diferente de viver a política: mais autêntica, mais afectiva. Forjavam-se relações e solidariedades políticas que perduravam, para além das conveniências de momento ou de divergências conjunturais.

Passos entrou para a JSD por causa de um campeonato de cartas. Naquele ano de 1978, estava em Vila Real e era Verão, o que significava três meses de tédio. Não havia praia, não havia piscinas, não havia nada para fazer. Pedro tinha 14 anos. Aos 12, tinha ido a Lisboa participar num congresso da UEC (União dos Estudantes Comunistas). Mas não se divertiu. Não se conversava o suficiente, as pessoas pareciam ter todas a mesma opinião. Na JSD, tudo parecia ser mais interessante.

Pedro sempre gostou de conversar. Em Angola, onde viveu entre os 5 e os 10 anos, costumava "infiltrar-se" nas conversas do pai, no palácio do governador do Bié. O pai, médico, era director do Serviço de Saúde e tinha por hábito falar com os amigos sobre a situação do país, os problemas do mundo. Numa altura em que a asfixia na metrópole era verdadeiramente antidemocrática, em Angola podia-se falar com relativa liberdade. Pedro, com 7 anos, gostava mais de ouvir as conversas sérias do que de brincar.

Sempre foi assim: fazia tudo antes de tempo, ou depois de tempo. Aos 21 anos, foi viver com uma cantora das Doce, Fátima Padinha, por quem estava apaixonado, sem ter casado com ela. Ainda sem estar casado, teve a primeira filha. Depois foi trabalhar antes de terminar o curso. Não entrara em Medicina porque, para ficar próximo da política, não quis concorrer para longe de Lisboa. Matriculou-se em Matemática. Depois tornou-se deputado em vez de consolidar a carreira profissional. Só regressou à faculdade, para estudar Economia, depois dos 30. Andou para trás e para a frente, fez tudo ao contrário do que era esperado.

"Não pelo prazer de ser do contra", diz ele. Mas a verdade é que até as causas que escolheu foram sempre as que poderiam provocar a discórdia. Como, na JSD, a recusa do serviço militar obrigatório, das propinas ou da penalização das drogas leves, o que irritava os líderes do partido.

Liberal nos costumes

É próprio da sua geração ser liberal em relação aos costumes. O casamento gay ou o aborto não podem ser tabus para quem cresceu já depois do 25 de Abril. É uma questão de modernidade, de civilização, como explica o seu amigo Vasco Rato. Não é possível ficar para trás no tempo. Mas, no caso de Passos Coelho, todo esse liberalismo surgiu mais por aggiornamento do que por formação, acha outro grande amigo, Ângelo Correia. No âmago, é um conservador, como bom transmontano que é. Seja como for, Passos esgrimiu com convicção as "causas fracturantes". Não deverá fazê-lo agora, pensam os amigos. Há outras mais importantes.

Outro defeito: é teimoso. Rígido e orgulhoso, faltam-lhe rins para quando é preciso driblar. É racional, talvez frio. Muito analítico. Gosta de decidir e gosta de mandar. E gosta de ter razão. É assertivo. E ainda mais este defeito: não tem capacidade de síntese. Perguntam-lhe por um assunto, e ele fica uma hora a explicar. Se não lhe dão uma hora, não consegue fazer-se entender, e passa por pouco inteligente. Pior: passa por artificial. E aquela voz e aquele bom aspecto não ajudam nada. Há quem diga que é um político de plástico. Mas talvez se engane.

"Passos é um gestor", diz Relvas. Está habituado ao Deve & Haver das empresas, "a trabalhar com Excel". Por isso sabe aproveitar, rentabilizar, transformar os defeitos em qualidades. Extraiu benefícios de ter feito tudo na altura errada. Andou pelas frestas da existência e espreitou quanto pôde. E de tudo fez capital. É um gestor. Com ele, nada se perde.

Por ter vivido em África tornou-se mais aberto, mais tolerante para com a diferença. E também mais interessado e mais informado sobre os temas da política, que nas colónias se discutiam abertamente. E proporcionou-lhe ainda a perspectiva de alargar a economia portuguesa ao mundo lusófono (Angola, Brasil), onde considera que o país goza de vantagens competitivas.

Ter estado oito anos da sua juventude no Parlamento prejudicou-lhe a vida académica e profissional, mas ensinou-lhe muito sobre a política. E o hábito das jantaradas e da conversa criou-lhe o gosto pelo debate de ideias e a capacidade de ouvir e aprender.

Ter ido tardiamente para a faculdade permitiu-lhe contactar com pessoas mais jovens, e absorver muito da sua forma de pensar e sentir. Ter casado cedo, ter tido duas filhas desse casamento, deu-lhe um sentido de responsabilidade e uma estabilidade emocional que os jovens da sua idade não tinham.

"O Pedro é um homem de família", dizem todos os seus amigos. Os antigos companheiros da JSD lembram-se de como ele chegava atrasado às reuniões porque tinha estado a dar banho às filhas. Hoje, casado com Laura, de quem tem uma terceira filha, continua a dar a mesma importância à família, às tarefas domésticas, até à cozinha.

O espírito analítico e a teimosia fizeram com que Passos escrevesse um livro (Mudar, editado pela Quetzal), antes de se candidatar à liderança do partido. Demorou meses a redigi-lo, nas horas vagas, em casa ou nos tempos mortos da Fomentinvest, reflectindo, informando-se com especialistas de diferentes áreas. Agora tem nas mãos um documento claro e consistente sobre as suas propostas. Alguns amigos, como Ângelo Correia, acharam que escrever o livro era uma perda de tempo. Mas Passos perseverou e meteu-se ao trabalho. Poucos sabiam que o estava a fazer. Antes de entregar o original à editora, deu-o a ler a alguns amigos. Vasco Rato foi um deles e assinalou alguns pontos de que discordava. Passos ouviu-o com atenção, mas não mudou uma linha. É esse o seu hábito: ouve todos e depois decide sozinho.

"O livro foi importante para sistematizar ideias e para o responsabilizar por aquilo que defende", diz Vasco Rato. "A maior parte dos políticos portugueses não faz isso. Quando muito, escreve um artigo de jornal com as suas propostas".

"Um bom melão"

Aos políticos, é útil poder dar o dito por não dito. Passos deu-se ao trabalho de escrever um livro, e agora vai ter de ser fiel à sua palavra.

"Estamos num período de grande mudança. Chegámos ao fim da linha", explica Ângelo Correia, administrador da Fomentinvest, a empresa de que Passos acaba de se demitir, ao assumir as funções de líder do PSD. "E as pessoas estão fartas de estereótipos". Não querem um político superficial, que fale por sound bites. Precisam de alguém de "narrativa mais longa". Alguém que explique os problemas, com tempo e profundidade. "E as pessoas vão descobrir que Passos Coelho é um homem profundo".

Um homem que perfilha valores um pouco antiquados, como a honestidade, a honra, a fidelidade à palavra dada, a temperança, até a forretice. Mas são esses os valores, depois da crise dos últimos anos, que voltam a estar em alta. E Passos tem essa faceta de transmontano de boa cepa, que vai jogar a seu favor. Essa marca de provincianismo que afinal foi a mola que o fez saltar para a proeminência, para a liderança.

Porque Passos é um tímido. Segundo Ângelo Correia, é mesmo essa a característica dominante da sua personalidade. Sofre de uma timidez que lhe vem da noção de pertencer a um mundo diferente. Ele nunca se adaptou ao "consumismo, relativismo moral, hedonismo" que encontrou em Lisboa. Talvez tenha apenas fingido adaptar-se e, no processo, teve de recalcar uma parte de si.

Por isso não é capaz, em público, de exprimir sentimentos, e dizem que é frio. Ângelo Correia não quer chamar a isto um complexo de rapaz provinciano, mas reconhece que explica muito da sua necessidade de afirmação.

A voz, a pose de actor de cinema são os veículos que usa para, distanciando-se, se aproximar. É uma voz de barítono. Na ópera, género que Passos aprecia, os barítonos nunca representam o papel de herói nem de galã, geralmente reservados aos tenores. Entregam-lhes antes partes de marido traído. "Mas também de amigo fiel, monarca sereno ou adversário terrível", diz Passos. "É uma voz quente, possante, altiva. O barítono, pela textura vocal, tem geralmente um papel grave. E também por ser uma voz natural. A dos tenores é mais artificial".

Passos chegou a estudar canto lírico e até a inscrever-se num casting de Filipe La Féria, em que foi admitido. "Ele educa e cultiva a sua bela voz", diz Ângelo Correia. É um dos instrumentos da sua liderança natural. A beleza física é outro. Miguel Relvas diz que, desde jovens, ele era o líder porque era quem atraía as miúdas. "Eu sempre lhe disse: "Tu, um dia, vais ser líder do PSD"".

Vasco Rato lembra-se de que, no grupo de amigos, sempre houve a consciência de que Passos era o líder. "Ele era o melhor de nós todos, politicamente. Impunha-se. Era uma coisa natural. Faz-me lembrar aquele filme, The Natural, com o Robert Redford [sobre um jogador de basebol com um talento natural para o jogo]. O Pedro era assim. O natural".

"Ele consegue dar ordens falando baixinho", diz um amigo. "Ele impõe-se sem dizer nada", explica outro. "Na JSD, tinham-lhe um temor reverencial". E estas características vão acentuar-se, ao exercer a liderança, primeiro no partido, e em breve como primeiro-ministro, acredita Ângelo Correia. "O poder vai-lhe trazer autoritas".

Os apoiantes no partido acreditam firmemente que ele, ao contrário dos anteriores líderes, se vai aguentar. Miguel Relvas usa um melão para exemplificar. É um fruto que só revela as suas qualidades quando aberto, na mesa. Antes, é difícil saber. Mas um especialista sabe interpretar os sinais - o toque, a cor, o cheiro, podem ser indicadores fiáveis sobre o conteúdo. Pois Passos também transmite os seus sinais, e Relvas está em condições de garantir: "É um bom melão. Estamos em presença de um bom melão".

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