E a esquerda?

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dulce fernandes/arquivo

Com o desemprego a mais de 10 por cento, com o rendimento per capita a cair, com a dívida das famílias como nunca foi, com a desigualdade social a crescer, com o défice do Estado e a dívida externa sem solução à vista, com um primeiro-ministro, por assim dizer, pouco popular e com os partidos sem prestígio, Portugal politicamente não se mexe. Tirando uma ou outra sugestão de reforma constitucional, de resto vaga e quase sempre a tender para o presidencialismo, não há a mais vaga reacção às desgraças da Pátria. O que se compreende na direita, que desconfia da turbulência e da aventura. Mas não se compreende na esquerda, que nasceu, existe e se justifica pela mudança. Em princípio, o PC e o Bloco deviam andar por aí numa exaltação irreprimível e ameaçadora. Só que não andam. Só que se contentam, em vez disso, com uma pequena dose de intriga parlamentar e uma propaganda pacata e, ainda por cima, inócua.

Pior: o intelectual de esquerda, essa tão temida figura da burguesia e da "reacção", desapareceu. Continua a existir o escrevinhador que lamenta laboriosamente a desordem estabelecida e, de quando em quando, se agita com um escândalo qualquer, mais visível ou mais contundente. Já não existe o representante autorizado, e reconhecido, da justiça e da razão (da razão, sobretudo), o dono da história e o educador das massas. Nos tempos que vão correndo, o intelectual de esquerda tira um curso de economia ou sociologia e discute a grosseira realidade do país (que dantes nunca o incomodava) ou vocifera em vão contra o sistema financeiro internacional e malvadezes do género.

Acabou por se tornar um produto do mercado, ou seja, do capitalismo, e não é capaz de se imaginar sem o capitalismo. Verdade que jura pelo Estado Providência (como, de resto, o PS e o PSD) e gostava que os salários subissem (como, de resto, o PS, o PSD e o CDS). Infelizmente, perdido no trivial e no pormenor, deixou de pensar na grande utopia do passado: a nova sociedade e o novo homem. E, deixando de pensar no que essencialmente fazia dele um intelectual e, sobre isso, de esquerda, lá se foi extinguindo pouco a pouco sem ninguém reparar. Não admira que o PC tenha caído no simpático, e patético, Jerónimo de Sousa e que Louçã, sem direcção e consistência, se usasse tão depressa. No meio da balbúrdia vigente nenhum deles se ouve e à volta, por mais que se procure, é o deserto.

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