Eles tiraram Angola do gueto

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Muito antes da "world music" já o Duo Ouro Negro misturava tudo. Uma homenagem composta por versões das suas canções escala o topo das tabelas. Em compensação, um disco recentemente lançado, que reúne 22 canções do Duo Ouro Negro, fica-se pelo fim da tabela. 51 anos depois do nascimento de um dos mais sub-valorizados grupos que passou por cá, fica uma questão: que país é este?

Pode dizer-se muito de um país olhando apenas para tabelas: de desemprego, de exportações, de literacia. Mas também de música. Nos dez primeiros lugares da tabela de vendas de discos da Associação Fonográfica Portuguesa, correspondente à 14ª semana de 2010, encontramos uma estranha mistura de ingredientes. Temos Lady Gaga, como toda a gente tem Lady Gaga. Temos uma compilação de canções com letras de Ary dos Santos. Temos o novo disco de Tiago Bettencourt. Os Black Eyed Peas porque a selecção é de todos nós. Justin Bieber porque o amor é bonito, em particular quando meloso e vendido às dúzias. Raul Solnado, porque morreu. Tim, porque ainda não morreu. E Rita Guerra, porque cantou no Casino.

E em oitavo lugar o grupo Muxima. O grupo Muxima não é nem uma nova banda nem um conjunto de desconhecidos que finalmente vê a luz do dia. É composto por gente como Janita Salomé ou Filipa Pais e o disco que assinam, "Homenagem ao Duo Ouro Negro", está pela sexta semana consecutiva no topo da tabela. Trata-se de um disco que reúne dez versões de êxitos óbvios dos Duo Ouro Negro sem lhe acrescentar nada.

Descendo na tabela vamos encontrando coisas engraçadas. Temos um tal Dario que diz ao mundo "Preciso de Ti", Leandro que clama "Também Eu", David Fonseca que anda "Between Waves", um disco da jovem artista Amália que por sorte está acima dos D'ZRT, novos valores como os Scorpions e Paulo Gonzo, as jovens Amálias Mariza e Ana Moura, os Gorillaz, essa obra-prima chamada "Panda Vai à Escola", Alicia Keys e em último lugar uns tais Duo Ouro Negro.

Então os Duo Ouro Negro estão no topo por interposta pessoa, os Muxima, grupo que há-de ter escolhido este nome ou porque a palavra é nome de uma pastelaria em Ovar ou porque é título de uma canção dos Duo Ouro Negro; e estão no topo por si próprios embora não em disco de originais mas sim com um "Perfil", um "Melhor de", que ainda por cima foi editado depois do álbum de homenagem.

Resumindo: os Duo Ouro Negro são queridos pelos portugueses. Mas mais queridos pelos portugueses é a malta que faz versões que não acrescentam nada ao que os Duo Ouro Negro fizeram. Yami, co-director musical do projecto, disse ao "Jornal de Notícias": "Mexemos apenas em algumas harmonias, de modo a obter uma sonoridade que tem mais a ver com o século onde estamos. A nossa preocupação era a de não estragar as músicas nem o ADN delas".

Portanto, um projecto que tem como objectivo não estragar músicas vende mais que o projecto que tem as músicas. Faz sentido. Em Portugal, pelo menos, faz.

O ódio dos intelectuais

Quais as razões disto? Bonga, amigo do duo e, a dada altura, músico do Duo tem as suas opiniões, coincidentes com as de Gaby Fernandes, membros dos Irmãos Verdades, que durante anos acomparanham o Duo e Raul Indipwo, coincidentes com as de Nélson Oliveira, que tocou com eles durante anos a fio. A irmã de Raul Indipwo, a dona Maria Odete, pessoa de uma humildade comovente, não tem opinião sobre o assunto. Mas antes de chegarmos às conclusões, ouçamos quem de direito, contando a história de um dos grupos mais injustiçados que passaram em Portugal.

O Duo Ouro Negro, para certas gerações e classes foi sempre um daqueles ódios. Um daqueles ódios dos intelectuais portugueses que neles sempre viram pouco mais que a prova do nosso provincianismo. Duo Ouro Negro, tanto para os intelectuais da geração de 68 como para a geração de 75, era o mesmo que Tony de Matos, que Bonga: células cancerígenas que atrasaram a pátria no seu caminho rumo à rúcula, ao cinema de vanguarda, ao Yoga, ao Ya do kuduro que agora já é bom e antes não era.

No entanto, isto é mais demonstração de saloice do que cosmopolitismo. "Africaníssimo", o disco de estreia do Duo Ouro Negro, é uma obra-prima da música africana. E não é a única, porque ainda há "Mulowa Afrkia" (1967) e "Blackground" (1971), fora uma data de EPs que continuam a existir apenas em vinil.

Raul Indipwo nasceu no seio de quatro irmãos "do mesmo pai e mãe", e "mais dois só do pai e ainda uma irmã adoptiva que é uma irmã espiritual", segundo Maria Odete. A irmã do cantor e compositor, mais velha que ele quatro anos, conta que Raul e Milo "conheceram-se muito cedo", porque "as famílias eram amigas". Estiveram sem se ver muitos anos, mas um dia "o Raul foi para Carmona trabalhar e reencontrou o Milo". Como ambos gostavam de cantar, resolveram formar o duo. "Ao início", diz a Dona Maria Odete, "cantavam apenas em festas particulares" mas o apoio dos amigos levou-os a continuar. Isto em 1956.

Tiveram um ascensão rápida. "Em Angola passavam na rádio" numa época em que em Angola "ainda nem sequer se pensava em televisão". Bonga, nascido em Angola em 1942, conta que "mal apareceram" reparou neles. Na altura "a divulgação musical era precária" mas "a imprensa foi obrigada a ressalvar a existência deles por causa da qualidade do que faziam". Começaram a passar na rádio, "porque eram fortes: não havia como negligenciar".

É preciso ver que os tempos eram outros. "O que os africanos faziam em África não tinham impacto em Portugal", recorda Bonga.

... e os portugueses foram atrás

A grande oportunidade do grupo surgiu quando tocaram num sítio essencial. Nélson Oliveira era miúdo mas lembra-se de "os ver no Chá das 6",  "um programa de entretenimento" gravado na "sala de espectáculos chamada Cinema Restauração". Isto passou-se em 1959, e na audiência estava, conta Maria Odete, "o empresário Ribeiro Braga", que os trouxe para Portugal. "O Trio Odemira também ajudou a que viessem", acrescenta.

Nessa altura o Duo gravou "Africaníssimo", disco que pega nas raízes da música angolana para lhes dar uma volta, ainda que muitas marcas da música tradicional, como o reco-reco e os ritmos, estivessem lá. Mas já era um disco miscigenado, ou não tivesse sido feito em compadrio com um músico brasileiro, Sivuca.

Bonga explica de que era feita a música do Duo Ouro Negro. "Eles eram mais urbanos que eu. Eu vinha mais do folclore. Nós reconhecíamo-nos no semba [música de Angola, que está próxima da samba], e um pouco na marrabenta [música de Moçambique], que eu também fiz".

A importância de Sivuca nos primeiros discos não pode ser menorizada, diz Bonga. "O Sivuca foi grande. Dizem que foi marido da Miriam Makeba, não sei se foi se não. Era um exímio multi-instrumentista, particularmente no que toca ao acordeão. Eles só tocavam com amigos. E se os amigos fossem bons instrumentistas, melhor ainda".

"A partir do momento em que começaram a actuar em Portugal", conta Bonga, "aquilo foi uma explosão". Bonga não tem dúvidas: "Eles tiraram Angola do gueto". Depois, "quando tiveram êxito lá fora, os portugueses foram atrás. Aconteceu o mesmo comigo: primeiro os portugueses não fazem nada, depois apanham o comboio".

Maria Odete confirma esta ideia de explosão imediata. Mal o duo chega a Portugal "dá logo o salto para o estrangeiro".

Mas há dúvidas acerca do que terá sido a carreira musical do Duo - até para coleccionadores, é difícil perceber qual a discografia da banda, porque nessa altura gravavam-se muitos singles e EPs. Bonga recorda que em Angola o Duo foi "acusado de não tocar a realidade da música angolana".  Nélson Oliveira, que, tal como Bonga, defende que o grande mérito duo é a harmonia das vozes, diz que "a preocupação deles foi sempre dar uma nova roupagem às canções".

Bonga vê as coisas pelo mesmo prisma: mais que purismo, gaba-lhes a miscigenação: "Eles eram muito de transar com outras músicas. Em casa deles havia músicos de todo o lado do mundo 24 horas por dia. Os ritmos angolanos estavam lá, só que cruzados. Internacionalizaram o som angolano".

Mas é difícil não argumentar que em algum momento terá havido confusões em relação a que som seguir e a que imagem ter. Na capa de um single antigo surge o duo e um galo de Barcelos, numa espécie de multiculturalismo forçado. Nélson Oliveira acredita que "havia um interesse do sistema português em acarinhá-los para mostrar que o país era multiculturalista, para justificar a existência da ditadura e do Império. Aproveitaram-se deles".

Dona Maria Odete diz que "em primeiro lugar eles tinham como propósito a música angolana", "mas depois gostavam de música, e estavam atentos a toda a música, a todas as modas". Segundo a irmã do falecido compositor, o duo "ia buscar música a todo o lado. Eram ambos muito conhecedores da música angolana, mas não se pode dizer que tivessem de fazer um grande esforço de recolha: era só andar na rua e qualquer pessoa lhes ensinava uma canção antiga".

Flirtando...

Seja como for, o duo mudou de registo, adoptando à sua maneira o nacional-cançonetismo, flirtando com o rock à Roberto Carlos, inclusive criando uma dança, o "Kwela", um twist angolano.

"O Kwela é uma inovação deles", diz Bonga. "É uma ligação entre a música do sul de África com um ritmo lá deles". Fez febre durante algum tempo em Paris, e valeu-lhes edições internacionais.

Pelos anos 70, já depois do êxito no Olympia de Paris, o Duo Ouro Negro começou a desenvolver espectáculos grandiosos ao vivo e a voltar às raízes.

Bonga: "Eu toquei com eles percussão quando vim para cá. Eles reuniam gente para enriquecer a música deles. Eram a única coisa de alto nível vinda de África que havia cá. Tinham coreografias, convidados, aquilo tinha um princípio, meio e fim".

Nélson Oliveira conta que "eles faziam musicais africanos, com princípio, meio e fim. O 'Blackground' fazia uma viagem pela história de Angola, pela cultura africana, musicando e passando por várias regiões de África, mudando de ritmos, mostrando bailados. Fizemos isso em Paris, e outras capitais europeias. Era um espectáculo com mais de duas horas e meia. Na altura este disco foi o que melhor vendeu em Portugal. Estivemos um mês no Teatro da Trindade".

Gaby Fernandes confirma que este foi um "um período de retoma do Duo Ouro Negro" porque tinham "um espectáculo muito elaborado a nível não só das canções como da dança". "No Verão ele fazia uns 40 ou 60 concertos. Lá fora fazia outro tanto ao longo do ano".

Mas é inelutável que nos anos 80, como admite Fernandes, "eles começaram a cair um pouco". Ainda assim, ao vivo, a mística mantinha-se: "Todos os anos, a cada concerto que faziam marcava-se logo outro para o ano seguinte. No Canadá, em 1990, tínhamos três concertos marcados e acabámos por fazer seis"

Os anos 1980 foram uma espécie de ano "horribilis" para os músicos africanos em Portugal. É preciso lembrar, diz Gaby Fernandes, que o Duo "teve uma grande luta quando veio para Portugal. Na altura a comunidade africana era muito pequena e só depois aumentou. Estavam um bocado sozinhos".

"Nos anos 80", conta Bonga, "começou o show-business. O que vendia era o exótico". O que ficou para os angolanos "era a África do Tarzan, estereotipada". Bonga diz que essa imagem "passa por quem vende a música" e que muitos africanos (dos quais ele não se exclui) "foram levados a a pensar que o africano é mesmo aquilo". Segundo Bonga "até aos anos 80 os contratos era meia bola e força. Ninguém sabia quantos discos se vendiam, não se pagavam direitos de autor. Regra geral não havia nenhuma seriedade nisso".

A este propósito Dona Maria Odete diz: "Não faço ideia de como são os contratos que o meu irmão assinou". Que ela saiba "a família não recebe direitos de autor desta homenagem [do projecto Muxima]". "Mas", acrescenta, "estamos muito felizes por ela acontecer" 

Dona Maria Odete diz não saber porque razão o "Perfil" do grupo do irmão não vende mais que o disco de homenagem. Bonga realça que "não podemos esquecer que o original ainda está aí", que "ainda há os discos do Duo Ouro Negro". Ele acha que "as coisas aparentemente novas, as supostas novidades como os discos de homenagem, têm muito impacto. Porque é novo compra-se. Só porque é novo".

Gaby Fernandes vai pelo mesmo caminho. O membro dos Irmãos Verdades, que ajudou Raul na edificação de uma fundação para ajudar crianças angolanas vítimas de minas, acha que "as pessoas hoje consomem aquilo a que têm acesso. Aquilo que é promovido. Devem estar a promover a homenagem bem. Para mim não é uma grande homenagem, é uma re-gravação".

"O resultado das vendas tem a ver com a máquina promocional", diz, acrescentando que o público "nem sequer deve saber que os discos originais estão à venda".

E Nélson Oliveira também concorda com os restantes. Presume que "tenha havido um grande trabalho de promoção por parte da editora que produziu a homenagem". E realça o mais importante: "Ainda há imensa coisa por ser reeditada".

Seria uma boa forma de voltar a tirar Angola do gueto.

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