1939-2010 Dagoberto MarklO sábio que vivia no Museu de Arte Antiga e falava aos estudantes

Foto
Dagoberto Markl estudou aprofundadamente os PEDRO CUNHA

Apaixonado por História, arte antiga e por xadrez, Dagoberto Markl foi uma referência para muitos alunos de História de Arte. Gostava de mistérios e de jogos de inteligência

Dagoberto Markl estava sentado no seu lugar, na biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), estudando os livros antigos, e os alunos de História de Arte vinham ter com ele para o ouvir e para discutir ideias. "Era de uma enorme disponibilidade. Para nós, era uma espécie de tutor", recorda o historiador de arte e ex-director do Museu de Évora Joaquim Caetano.

Historiador, xadrezista, estudioso dos Painéis de São Vicente, autor de vários livros, pai do humorista Nuno Markl e da jornalista Ana Markl, Dagoberto Markl morreu no domingo, aos 70 anos, em Lisboa. "Era uma figura de sapiência para quem queria aprofundar certos temas", concorda José Alberto Seabra, conservador do MNAA. "Nos anos 80, os jovens que estavam no fim da licenciatura tinham uma espécie de consulta junto do sábio que vivia na biblioteca do museu."

"Nunca se punha no alto da sua sabedoria, que era imensa sobre a pintura do século XVI, os Painéis de São Vicente, a iconografia. Tratava qualquer jovem investigador como um igual. Isso marcou-me muito", acrescenta Anísio Franco, que durante muitos anos trabalhou ao lado de Markl no MNAA. "Tinha uma grande abertura a novas propostas, aceitava e ouvia os nossos disparates de jovens arrogantes. Tinha a capacidade de se tornar um participante das nossas descobertas."

Decifrar mistérios

Foi no início da década de 70 do século XX que Markl entrou para o MNAA (actualmente, estava reformado). Acabara de publicar no Diário de Notícias trabalhos sobre Damião de Góis e Camões, que chamaram a atenção da então directora do museu, Maria José Mendonça, que decidiu convidá-lo, conta Joaquim Caetano.

Dagoberto Markl tinha um percurso um pouco à parte do da maioria dos historiadores de Arte. Estudara Românicas na Faculdade de Letras e isso dava-lhe uma visão mais alargada do que estava por detrás de uma pintura. "Entendia a História de Arte como um facto cultural, com uma permanente ligação à história das mentalidades", diz ainda Caetano.

"Interessava-lhe sobretudo a iconografia, que reflectia a cultura e a sociedade em que a obra tinha sido feita", sublinha Seabra. "Não era um divulgador generalista. Tinha temas de eleição, como os Painéis, a Custódia de Belém, a pintura manuelina, Bosch. Mas era também um iconoclasta, com um gosto pelos temas que ninguém mais tratava e pelos pontos de vista não consensuais."

Quando se dedicava a estudar um assunto, fazia-o de forma obsessiva, empenhando-se em decifrar pequenos mistérios que surgiam nas pinturas. As origens austríacas (era filho de um austríaco e de uma portuguesa) tornavam-no, segundo Anísio Franco, "kantiano nas suas rotinas, de um rigor absoluto".

Paixão pelo xadrez

Essa "formação racional" conduziu-o àquela que era, a par da História de Arte, a sua outra grande paixão: o xadrez. "Tinha gosto por uma certa ideia de mistério, ligada ao xadrez, à identificação do problema e à sua resolução", diz Caetano. "Tudo para ele era um jogo de inteligência", reforça Anísio Franco. "O caminho da investigação era fascinante e aplicava-lhe a lógica do xadrez: não há um único caminho para chegar, pode haver vários caminhos, desde que sejam inteligentes."

Publicou várias obras, entre as quais o 6.º volume da História da Arte em Portugal (Alfa, 1986, com Fernando António Baptista Pereira), o Livro de Horas de D. Manuel (Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1983) e O Retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa (Caminho, 1988).

É também autor de Xeque-Mate no Estoril. A morte de Alexandre Alekhine (Campo das Letras, 2001), sobre Alekhine, antigo campeão mundial de xadrez encontrado morto no Estoril em 1946. Anísio Franco recorda que Markl estava há vários anos a trabalhar numa história do xadrez em Portugal, uma grande investigação da qual falava muitas vezes, revelando as novas descobertas que ia fazendo.

O funeral parte hoje às 15h30, do centro funerário Santa Joana Princesa para o Cemitério do Alto de S. João, em Lisboa.

Sugerir correcção