Histórias de lapsos, enganos e clientes que nunca o foram

Supostos donos de lotes vieram depois desmentir propriedade. Um disse que foi "lapso" do projectista. O outro diz agora que as suas assinaturas foram falsificadas.

José Sócrates subscreveu em 1987 o projecto de uma moradia que afinal eram duas geminadas e em 1988 responsabilizou-se pela sua execução. Em toda a documentação entregue declarou que o dono da obra e seu cliente era um munícipe chamado José Maria dos Santos Martins. No fim do ano passado, porém, este disse ao PÚBLICO que nunca teve ne- nhuma moradia e que nunca falou com Sócrates na vida. Esta é uma das situações pouco claras em que o então deputado se envolveu na Guarda e que estão à vista no arquivo da câmara local.

A fazer fé no processo camarário, José Maria Martins requereu, e está lá a sua assinatura em diversos documentos, o licenciamento de uma moradia projectada por Sócrates na Quinta dos Bentos, naquela cidade. No meio das críticas dos serviços camarários, que levaram o executivo municipal a aprovar uma advertência ao projectista em Maio de 1987 (ver texto na pág. 4), foram ali aprovadas duas moradias geminadas e não uma, como previa o loteamento. Em 1989, já com outro projectista, acabaram por ser aprovados para o mesmo local quatro pisos com seis habitações.

Nessa altura, após requerimento assinado por José Maria Martins, a titularidade do processo passou para o nome de Júlio dos Santos Fernandes, então o maior construtor civil da Guarda. Motivo invocado para o pedido de Martins: dificuldades económicas que não lhe permitiram proceder à "escrituração do lote". Sucede que a lei era taxativa quanto à obrigatoriedade que o requerente tinha de fazer prova - que não lhe fez nem lhe foi pedida - da propriedade do lote quando entregou o projecto.

Confrontado em Janeiro com cópias dos documentos por ele assinados e com as referências que Sócrates lhe faz no termo de responsabilidade e noutras peças do processo, José Maria Martins não hesitou: "Isso é impossível. Essas assinaturas não são minhas e eu nunca fui dono de nenhum lote para construção. Tinha acabado de sair da tropa e não tinha um tostão".

Sem querer acreditar no que via, garantiu nunca ter falado com Sócrates. Mas quando ouviu o nome de Júlio dos Santos Fernandes o mistério começou a dissipar-se. "Nessa altura trabalhei para a firma dele como empregado administrativo, mas nunca ninguém me falou em nada, nem eu assinei esses papéis." José Martins adiantou que em 1989, quando alguém terá falsificado a sua assinatura no pedido de averbamento em nome do antigo patrão - que está incontactável por razões de saúde - "já tinha saído da empresa há mais de um ano".

Projecto "não exequível"

Noutro caso, em Fevereiro de 1989, já em regime de dedicação exclusiva em São Bento, José Sócrates assinou o projecto e responsabilizou-se pela construção de um prédio com seis fogos que o seu cliente Adelino dos Anjos Gonçalves queria erguer em Guarda-Gare. Adelino Gonçalves, que o PÚBLICO também não conseguiu contactar, assinou os requerimentos necessários e o projecto, subscrito por Sócrates, foi aprovado em Abril desse ano, depois de feitas as alterações impostas pela câmara. Na apreciação feita à sua versão inicial, os técnicos camarários escreveram que "o telhado está incorrectamente desenhado e não é exequível em obra"; "as varandas não estão em esquadria"; "as marquises do rés-do-chão devem ser eliminadas porque estão muito baixas em relação ao solo" e ocupam terreno "que fica para lá da área de implantação aprovada".

Uma vez alterado e aprovado o projecto, António da Silva Correia, também um conhecido empresário de construção do concelho, pediu à câmara o averbamento em seu nome do projecto aprovado a Adelino Gonçalves, juntando escritura que provava ser ele o dono do lote. Chamado a explicar-se, Adelino Gonçalves dirigiu um requerimento à autarquia em que pede igualmente o averbamento em nome do empresário, "em virtude de ter havido lapso por parte do projectista, uma vez que o terreno e respectiva construção é propriedade de António da Silva Correia".

Ouvido pelo PÚBLICO, António Correia mostrou-se surpreendido por ter sido Sócrates o autor desse projecto, uma vez que sempre trabalhou com "um desenhador da câmara chamado Costa", e afirmando nunca ter percebido "por que é que os papéis estavam em nome do Adelino". Segundo expli- cou, este era um subempreiteiro que às vezes trabalhava para ele, mas nunca foi dono do lote.

Uma casa fora do sítio

Um último caso pouco claro em que surge o nome do primeiro-ministro prende-se com a construção de um armazém agrícola, que depois foi transformado em moradia na aldeia de Faia. O projecto do armazém, a que Sócrates chamou moradia nas peças que assinou, remonta a 1984, mas o da habitação, concebida por cima daquele pelo mesmo autor, é de Setembro de 1988.

A originalidade desta obra está no facto de a câmara a ter aprovado em 1985, na condição de a mesma ter um pé-direito (altura entre o chão e a placa) de armazém (três metros), que não tinha no projecto, e recuar um metro em relação ao local assinalado na planta de implantação feita por Sócrates. O objectivo desse recuo era que a construção ficasse alinhada com uma moradia existente um pouco mais acima e que era a única da rua.

Face a uma queixa da junta de freguesia apresentada quando as paredes já estavam feitas, o engenheiro-chefe da repartição técnica deslocou-se ao local e constatou que o armazém, em vez de ter recuado um metro para alinhar com a casa, estava a ser construído, sob a responsabilidade de Sócrates, com "um desfasamento de seis metros" em relação a ela. Ou seja: tinha sido implantado cinco metros à frente do local apontado no projecto e seis em relação ao que fora aprovado.

Embargados os trabalhos, tudo acabou em bem: a junta declarou que a situação, afinal, não lesava o interesse público e a câmara legalizou a obra sem qualquer chamada de atenção ao responsável pela execução. Três anos depois, Sócrates projectou a moradia em cima do armazém e a construção, sob a sua responsabilidade, foi feita em 1989.

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