Tiago Bettencourt não se comove por tudo e por nada

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Anda bastante atarefado, com o primeiro lugar que Em Fuga ocupa na tabela de vendas nacional

O Tiago Bettencourt que nos fala de "emoção" e de "carga de verdade" é aquele que conhecemos. Mas essa é, parcialmente, uma ideia feita. Conclusões da jukebox Ípsilon? Tem os Radiohead no altar mas também se emociona com Michael Jackson; acha o reggae actual insuportável e o "mosh" prática digníssima

Tiago Bettencourt estava atrasado para um programa de rádio e ainda tinha que passar pelo estúdio para apanhar a guitarra. Anda bastante atarefado, como se intui pelo primeiro lugar que "Em Fuga", o seu segundo álbum a solo, ocupa na tabela de vendas nacional. Tiago Bettencourt, recuperamos, estava atrasado e só tínhamos tempo de lhe mostrar mais uma canção. Já tinha elogiado um concerto de Boyz Noise no Lux, já o ouvíramos descrever "moshada" (dele) durante os Arctic Monkeys, já percebêramos que Vampire Weekend não é com ele e que reggae menos ainda.

Dado que Tiago Bettencourt, o ouvinte de música, se mostrara diferente da imagem que as suas canções projectam, achámos por bem "sacar um coelho da cartola" e encerrar em grande a "jukebox" que preparámos para ele. O Rei da Pop. Michael Jackson, ele mesmo, gloriosamente disco-funk em "Rock with you". Tiago lança um sorriso de satisfação. Conta-nos que o primeiro CD que comprou foi "Dangerous" ("ou um dos Beach Boys") e que há uns tempos se passou com a versão remasterizada de "Thriller".

Tiago, atentem, até foi ver "This Is It", o filme da digressão que não chegou a acontecer. "Fiquei comovido com aquilo. Estava à espera que fosse horrível mas não. Saí de lá a pensar, 'vou fazer música, vou fazer bem às pessoas, vou fazê-las todas felizes'". Tiago comovido. Tiago em êxtase. Soaria a cliché dizer que é um homem de emoções, mas é verdade - ainda que não se comova por tudo e por nada. O seu novo álbum, assim como "Jardim", o primeiro que assinou depois do fim dos Toranja, é maioritariamente viagem íntima: são cartas e conselhos de amor, num tom reflectivo com piano e guitarra acústica como pano de fundo.

Tiago Bettencourt nasceu em 1979 e despertou a sério para a música com o grunge. O que lhe ouvimos enquanto, em fundo, Kurt Cobain canta "Heart shaped box" soará familiar àqueles que com ele partilham a mesma geração. Começar a tocar guitarra no 9º ano e apanhar com o "Nevermind": "muito gritei Nirvana no meu quarto, com o meu irmão a gritar para que me calasse". Ver os Nirvana na televisão pela primeira vez, "a cantar o 'Lithium', 'yeah yeah, yeh, yeeeeaaaah', ver pela primeira vez um gajo a atirar-se para o público e pensar, 'o que é isto? Está tudo doido?'". O grunge "e aquela coisa muito de entranhas" despertou-o verdadeiramente para a música, mas não o comoviam. Isso, percebemos aqui, chegou depois. Chegou quando os Radiohead enquanto jovens se fizeram ouvir nos escritórios da Universal, onde instalámos a jukebox Ípsilon.

Ainda vamos nos primeiros segundos de "Fake plastic trees" e ele já suspirou, "esta canção mudou toda a minha vida", já se deixou levar pela memória. Adolescência, pois claro: "Faz-me lembrar as férias em Porto Covo antes dos 'hippies' invadirem as praias. Esta canção era uma das minhas especialidades". Os Radiohead são tanto que Tiago Bettencourt não se importa de ser sacrílego. "Certa vez, fui vê-los a Londres e, poucos meses depois, vi o Tom Waits em Barcelona", conta antes de largar a bomba: "Ele não me tocou muito porque ainda estava completamente fascinado com o concerto dos Radiohead. É muito bom, mas já não tem o Marc Ribot na guitarra e foi muito calminho. O concerto dos Radiohead? Fora do normal. Apesar de terem álbuns muito produzidos, não se esquecem de pôr na música uma carga de verdade muito grande. Ouves Radiohead e tens tudo".

A emoção é tudo

O Tiago Bettencourt que nos fala de "emoção" e de "carga de verdade" é aquele que conhecemos das canções e das entrevistas. Mas essa é, parcialmente, uma ideia feita. Há um momento na conversa em que lhe perguntamos se não será escolhido pela música que ouve. Isto porque lhe mostráramos os frenéticos Vampire Weekend de "Cousins" e, ele, primeiro pensativo, brinca depois um pouco: "se se pusesse agora um saxofone, parecia Primitive Reason". Pausa. "Faz-me lembrar skas, mas esta coisa do ska... " Nova pausa: "Só te sei dizer que isto não me toca".

Este "só" explica muita da relação que estabelece com a música. Se há um momento em que "a música não o toca", segue em frente e despede-se dela. Aconteceu-lhe com os Beach House, como descobrimos ao oferecer-lhe "Norway".

Ouviu "Teen Dream" no MySpace, achou-o um grande disco e foi com grandes expectativas para o concerto da banda no último Super Bock em Stock. Saiu de lá desiludido: "Ouves as canções e pensas que, ao vivo, serão melhores, maiores, mas o concerto não foi nada de especial. Fiquei tão desiludido que ainda não comprei o CD".

Os Beach House não são caso único. Algum tempo depois, estava no meio da plateia de um Campo Pequeno lotado para ver os Arctic Monkeys.

Entrou lá "muito fã", saiu de lá sem fanatismo. Justifica-o de forma curiosa, com uma lição de veterano sobre dinâmicas do "mosh". "Desde muito cedo que vou para o 'mosh', desde os concertos dos Pearl Jam no Dramático [de Cascais] ou os primeiros [em Portugal] dos Metallica. O bom nestes concertos é estar a 'bombar', mas depois haver pausas onde se cria tensão e se ganha força para voltar. E os Arctic Monkeys não tiveram pausas. A certa altura andava ali aos saltos a pensar que já não havia qualquer pretexto para o fazer". Foi beber uma cerveja ao bar, achou que os Arctic Monkeys se submetem a uma fórmula e riscou-os da sua lista de preferências. A música deixou de o tocar, abandonou-a.

A melomania de Tiago Bettencourt reage impulsivamente. Os seus pais, descreve, "ignoraram tudo o que se passou depois dos Beatles". Em casa, a música disponível ia até José Afonso e, sendo a família de Coimbra, ouvia-se muito fado. Fado que ele recusou até tarde. Até que, aos 17 anos, um amigo o levou a uma casa de fados e ele voltou, quinta-feira após quinta-feira, "apaixonado por aquele ambiente". Ouve-se "Com que voz", de Amália Rodrigues - "na mouche, é o meu fado preferido".

Jacques Brel, por sua vez, ficou preservado desde a infância. Descobrimo-lo ao passar "Ne me quitte pas": "O meu pai é o maior fã que conheço e uma das imagens que guardo de pequeno é Jacques Brel a cantar, empapado em suor. Pegar nas cassetes [vídeo] que o meu pai tinha e vê-lo a cantar aquele francês tão bem dito era das poucas coisas que me faziam sentar na sala". Nos seus afectos musicais, tudo remete para a emoção, para a tal noção de verdade. Mais uma prova? Os Fleet Foxes.

"Quiet houses" e uma exclamação: "Muito bons!" Se as harmonias vocais têm alguma predominância no seu último álbum, tal deve-se aos bucólicos barbudos de Seattle. "Percebo que digam que é muito Mamas & Papas, mas eu que andei no coro dos Salesianos do Estoril acho óptimo tornar isto cool. Está a trazer de volta a fogueira". E Tiago, no que à "freakice" diz respeito, é "a favor da fogueira e contra o djembé". Aliás, sempre contra a praga do djembé. Estão os Fleet Foxes a harmonizar vozes e guitarras acústicas e ele a lamentar, divertido, que "a partir do momento em que apareceu o djembé, não havia música nenhuma que não o tivesse, porque o gajo que tem o djembé não consegue parar de tocar. E o pior é que normalmente toca mal".

Tiago Bettencourt continua a explicar porque se tornou insuportável a democratização do djembé, fala-nos, contraponto feliz, do quanto adora ir aos concertos de Buraka Som Sistema e atira ao ar um "não escolho géneros de que gosto". Acto contínuo, acrescenta, "mas há coisas para as quais sei que não tenho paciência". Como por exemplo? "Reggae. Adoro Bob Marley, mas já não sei para onde querem ir [as novas bandas]. São tão previsíveis. Sejam de que país forem, têm que ter pronúncia jamaicana, o que é absolutamente ridículo".

Há uns tempos, estava no Lux a ver Boyz Noise, a dançar e a apanhar toda aquela descarga rítmica. Aparece-lhe um tipo à frente, com ar espantado: "Tu não és o gajo dos Toranja? E gostas de electrónica?" Na altura, limitou-se a responder que sim às duas perguntas. Agora, aproveita a deixa e resume-se enquanto ouvinte: "Gosto de tudo o que me altera o organismo". Até, quem sabe, de um djembé tocado com a devida perícia.

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