O cinema português nunca existiu tanto e com tão pouco

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Projecção pública de Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes Paulo Ricca/PÚBLICO

Em 2009, o cinema português foi a retrospectiva de Pedro Costa na Tate Modern e a Palma de Ouro em Cannes para uma curta-metragem de João Salaviza, Arena, mais os 929 mil euros de receita de bilheteira de Amália, o Filme, e um possível blockbuster português falado em inglês, Second Life, que acabou por não sair das salas em ombros mas ainda assim fez 90 mil espectadores (desde 2004, só sete longas-metragens de produção nacional tiveram melhor desempenho). É muito, é pouco? É o que há, com o dinheiro que há: no ano passado, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) investiu um total de 8 milhões de euros no apoio à criação e à produção cinematográfica. São cinco milhões a menos do que o dinheiro disponível em 2000 e 7,5 milhões a menos do que em 2001. Agora já sabemos do que falamos quando falamos da "catástrofe iminente" do cinema português - uma declaração de calamidade pública que levou mais de 2300 pessoas, encabeçadas por Manoel de Oliveira, a exigirem, no Manifesto pelo Cinema Português de há duas semanas e meia, "uma intervenção de emergência" da ministra da Cultura.

Como é que se vive, afinal, do cinema português? "Vivemos mais para o cinema do que propriamente do cinema", resume Rodrigo Areias, 31 anos, com um historial de produção repartido entre Periferia Filmes, que fundou com João Trabulo, e o Bando à Parte, um colectivo do Porto. Está a filmar pela primeira vez com dinheiros do ICA - recebeu um apoio de 42 mil euros -, depois de ter feito uma longa, Tebas, e uma curta multipremiada, Corrente, sem financiamento público: "É possível fazer filmes em Portugal sem apoio do Estado, claro - mas tens de ter um gang contigo a alinhar nessa maluquice. Os técnicos e os actores do Corrente não receberam um chavo. Não dá para fazer a coisa assim a vida inteira."

E no entanto tem sido essa a vida inteira recente do cinema português - mesmo produtoras sólidas, como a MGN Filmes de Tino Navarro ou a Filmes do Tejo de Maria João Mayer, admitem que o sector está perto da ruptura. "Em 20 e tal anos nunca deixámos de cumprir um único compromisso. Mas não dá para grandes aventuras, como é óbvio. E a situação agravou-se muito com a diminuição dos apoios à produção, num país em que ainda não há condições para o autofinanciamento da actividade cinematográfica. Há produtoras mais conservadoras que conseguem resistir, mas muitas estarão a perguntar seriamente se devem fechar a porta", sublinha Tino Navarro. Luís Urbano, cuja O Som e a Fúria produziu um dos casos mais singulares do cinema português dos últimos anos, Aquele Querido Mês de Agosto (mais de 20 mil espectadores em Portugal, e uma carreira internacional que podemos considerar exuberante: só numa semana, fez mais de 4000 espectadores na Argentina), por exemplo: "Em 2009 não ganhámos nenhum apoio e por isso este ano não vamos produzir nada. Essa interrupção pode ser fatal para nós - e estamos a falar de uma das produtoras mais bem-sucedidas, o que dá para ter uma ideia da fragilidade de tudo isto." Também a Stopline, de Leonel Vieira, se viu impedida de fazer filmes no ano passado: "A produção está de facto paralisada", diz o realizador.

Mesmo quando há apoios do ICA e, portanto, dinheiro para remunerar a mão-de-obra envolvida, o cinema é uma actividade particularmente mal paga, sublinha Pedro Borges, da Midas Filmes, um dos primeiros subscritores do manifesto: "Nesse sentido, todos os filmes sérios são em grande parte autofinanciados. São feitos com montantes baixíssimos para o que deviam custar e para o que se gasta noutros países, e as pessoas ganham muito mal. Não é saudável." A estagnação dos financiamentos do ICA provocou um claro "empobrecimento" do sector, acrescenta Maria João Mayer: "Produzir filmes é economicamente catastrófico."

"Matar no ovo uma geração"

Em Portugal, o cinema é um tecido precário composto sobretudo por microempresas - mas que em 2005, segundo dados do estudo O Sector Cultural e Criativo em Portugal, encomenda do Ministério da Cultura à Augusto Mateus & Associados, empregava 6020 trabalhadores e representava 4,5 por cento da riqueza gerada em Portugal pelo sector (165 milhões de euros). Podíamos fazer muito mais e muito melhor, insiste Pedro Borges: "Há cada vez mais pessoas a querer fazer filmes e cada vez se apoiam menos filmes. Estamos a matar "no ovo", como se costuma dizer, toda uma nova geração."

O problema é estrutural e tem a ver com a gritante insuficiência do mercado português - somos um país pequeno e só vamos 1,6 vezes por ano ao cinema, quando a média europeia é de 2,3 vezes -, com o desinteresse dos privados pelo cinema de produção nacional (Pedro Borges diz que faz falta uma verdadeira Lei do Mecenato, António Ferreira, da ZEDFilmes, e Leonel Vieira dizem que é preciso copiar o modelo brasileiro de incentivos fiscais) e com a má relação entre o cinema português e os espectadores. "A quota de mercado do cinema nacional é de dois por cento. É irrisório. A média europeia é de 23 por cento. Se estivéssemos na média, tínhamos quatro milhões de espectadores e 20 milhões de euros de receitas de bilheteira", aponta Tino Navarro. Seria todo um outro filme, concordam os restantes produtores ouvidos pelo PÚBLICO.

Apesar de tudo, 2009 não foi um ano para esquecer: mesmo tendo tido de desistir, "por causa da paralisia do Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual [FICA]" (ver caixa), de um projecto em 3D, a MGN Filmes conseguiu manter a sua média de produção (um filme a um filme e meio por ano) e, em Coimbra, a produtora de António Ferreira teve "até um ano bastante produtivo" (duas longas, um documentário, três curtas), em parte graças a sinergias com o estrangeiro. "Estamos cada vez mais a fazer co-produções com outros países porque a estagnação financeira sente-se muito mais em Portugal. Aqui nunca houve muito dinheiro para fazer cinema - e o que há está mal distribuído", diz o realizador, cuja recente segunda longa-metragem, Embargo, foi "viabilizada fora de Portugal".

Publicidade e videoclips

Para sobreviver - sobretudo em Coimbra, na periferia do cinema português -, a ZEDFilmes teve de diversificar a sua área de negócios e ir também à publicidade e aos videoclips, que representam actualmente 50 por cento da sua produção. É esse jogo de cintura que lhe tem permitido manter uma equipa fixa de sete pessoas - e gerar dinheiro para fazer filmes não subsidiados: "Quando conseguimos o financiamento para o documentário Futebol de Causas, já estávamos há meses a filmar. É avançando por nossa conta que temos conseguido continuar a produzir. Mas sempre com muito aperto financeiro."

A Stopline também optou pela diversificação: "Estamos a produzir séries de televisão e filmes publicitários. Estrategicamente, desde que criámos a empresa quisemos estar presentes nas três áreas - até porque em Portugal seria impossível viver só de cinema. A Stopline só tem alguma estabilidade porque a publicidade é um sector forte da facturação", diz Leonel Vieira". No cinema, Brasil e Espanha têm sido parceiros estratégicos; é "o único caminho viável" para quem não quer "passar a vida a contar histórias só à medida do dinheiro que existe em Portugal", e das audiências portuguesas. Uma das próximas produções da Stopline é, de resto, a adaptação cinematográfica de Budapeste, o romance de Chico Buarque.

Fora de Lisboa, a Bando à Parte vai mantendo, com a produção de videoclips e habilidosas montagens financeiras com o estrangeiro (Brasil e Finlândia, por exemplo), uma actividade regular. "Mas estamos todos permanentemente em risco de passar a ir vender sapatos para o centro comercial. Infelizmente, somos uma espécie em vias de extinção", diz Rodrigo Areias. Ou pelo menos uma espécie na gaveta: na da Midas, por exemplo, estão neste momento projectos como o cinco-em-um Histórias de Amor (cinco contos de José Cardoso Pires realizados por Fernando Lopes, Fonseca e Costa, Joaquim Leitão, Margarida Cardoso e Cláudia Clemente), a série de três episódios para televisão que devia acompanhar a próxima longa de João Canijo, Sangue do Meu Sangue, e Com a Roupa do Corpo, documentário de Helena Matos sobre os retornados. Na da Filmes do Tejo, há uma longa de Inês de Medeiros que espera há dois anos por financiamento e um projecto de adaptação de um romance de José Eduardo Agualusa.

Não sabemos se, nem quando, os iremos ver. É portanto aqui que está pelo menos uma parte do cinema português: corremos o risco de ficar sem ele.

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