Piroga milenar que nunca navegou saiu de Belém

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Instalação do espólio no MARL custará 20 mil euros mensais Rui Gaudêncio

O espólio já foi retirado da Avenida da Índia para dar lugar às obras do novo Museu dos Coches. Viagem das duas últimas peças.

"Isto parece Beirute!" Francisco Alves, arqueólogo, responsável da Divisão de Arqueologia Náutica e Subaquática (DANS) do Instituto de Gestão do Património, descreve assim o cenário de destruição naquela que era a casa dos tesouros da arqueologia náutica nacional, na Avenida da Índia, em Lisboa. Numa parede ainda se vê o símbolo da DANS: "É uma assinatura de um piloto do século XV", diz sobre o desenho que reproduz uma caravela, pintado na parede. Já não há janelas. Nem tesouros nos 15 mil metros quadrados virados para o Tejo, em Belém, onde vai nascer o novo Museu dos Coches.Entre montes de entulho, máquinas em funcionamento, paredes derrubadas como se tivessem sido bombardeadas e vidros partidos, ainda se mantém de pé o grande armazém que albergou a arqueologia náutica. É o último a vir abaixo. Mas vai estar de pé por pouco tempo. Desde Novembro que a equipa de Francisco Alves está a fazer a mudança de casa para o pavilhão CC1 do MARL, o Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, em São Julião do Tojal, Loures, onde o Igespar alugou um edifício que albergará, pelo menos por dois anos, as reservas nacionais de arqueologia náutica. Esta operação vai custar aos cofres do instituto 20 mil euros por mês até que ocorra a planeada instalação de toda a arqueologia nacional no edifício da Cordoaria, em Belém. Mas as obras só arrancam em 2011.

Para trás só tinham ficado as duas pirogas com 2300 anos, encontradas no Rio Lima em 2002 e que exigem transporte especial. Foram esta semana para o Mercado Abastecedor numa operação que levou um dia inteiro.

São 9h22. João Coelho, conservador do DANS, de fato de mergulho vestido, molha, com a mão, como quem humedece uma baleia encalhada na praia, a piroga monóxila que estava submersa num tanque e que foi içada com a ajuda de um guindaste, com cuidado, como quem iça um animal em sofrimento.

"Está ainda com os cortes da madeira frescos, como se tivesse sido talhada há pouco tempo", aprecia Francisco Alves.

"São seis metros de tronco esculpido de uma só peça. Esteve no leito do rio, congelada, à espera do arqueólogo", acrescenta. Aponta para uma das pirogas monóxilas, que ganham este nome por serem esculpidas num único tronco, como explica o especialista: "Esta nunca navegou." Quase ultimada, há mais de dois mil anos, acabou por fender nas extremidades antes de ter iniciado a primeira viagem.

Os trabalhos de transporte das peças começam. Uma dezena de pessoas trabalha para que tudo corra bem. O objectivo é poisar a piroga num berço de polipropileno que aconchegará a embarcação milenar na viagem até ao mercado, dentro de um contentor, também ele de polipropileno. Chegados ao MARL às costas de um veículo longo, os tanques serão cheios de água desionizada. "Podem ficar ali anos", diz Francisco Alves.

O próximo passo será a impregnação, tratamento que permite expor as pirogas ao ar sem risco de se perderem. Mas as condições necessárias não estão reunidas: "Temos algumas medievais já impregnadas à espera que o Museu de Arqueologia tenha uma sala de estufa."

"Estas pirogas são as embarcações mais antigas do mundo que tenham chegado até nós. Há registo de três no mundo, na China, Nigéria e Holanda, com oito mil anos."

É já meio-dia quando a segunda piroga entra no contentor. Enquanto esperou, foi regada e mimada. Este é o fim da arqueologia em Belém. Até que as peças, que vão esperar no MARL, possam regressar à zona ribeirinha, na Cordoaria.

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