Antony Beevor, autor de obras como "Estalinegrado", "A Queda de Berlim" ou "Dia D", tornou-se conhecido como um historiador dotado para, com rigor e secura, descrever a inumanidade da guerra, em especial a brutalidade sem limites da II Guerra. Ao lado destes trabalhos, "O Mistério de Olga Tchekova" surge-nos quase como um devaneio. Até porque o historiador não demonstra, antes contraria, o mito de que a actriz que chegou a ser a favorita de Hitler tenha, ao mesmo tempo, trabalhado para Estaline. Porquê, então, dedicar-lhe um livro, mesmo que pouco ambicioso?
A resposta é fácil: por mais mistérios que continuem a rodear a vida desta sobrinha de Anton Tchekov, por mais difícil que ainda se revele o acesso aos arquivos mais secretos da URSS nos anos de Estaline, ao contar-nos os altos e baixos daquela actriz talentosa - e mulher determinada -, Beevor traça-nos também um elegante fresco sobre o destino de duas famílias de apelidos famosos numa Europa central devastada por guerras e revoluções Olga é o "pivot" em torno do qual vemos girar os membros do clã Tchekov - com destaque para Olga Knipper-Thekhova, viúva do dramaturgo, tia de Olga e grande estrela do Teatro das Artes de Moscovo - e da família Knipper, um clã russo de origem alemã de que o compositor e espião Lev Knipper (irmão de Olga) acaba por se tornar personagem central. Com a excepção da tia, uma figura tutelar cujo estatuto como grande senhora do teatro russo, admirada por Lenine, lhe permitia viver em relativa liberdade e ganhar o suficiente para apoiar a família nos períodos mais difíceis, nenhuma das figuras retratadas entusiasma Beevor. Lev Knipper, apanhado pela Revolução Russa numa área controlada pelo exército branco, pelo qual combate denodadamente, é um compositor esforçado mas sem génio que se torna num fervoroso patriota russo, num estalinista que, como agente dos serviços secretos, acaba por recrutar a irmã em condições ainda não totalmente esclarecidas. Já Misha Tchekov, o primeiro marido de Olga, actor com tanto talento para os palcos como atracção pela bebida, seguirá para Hollywood, onde chegará a exercer alguma influência.
E depois temos Olga, autora de uma auto-biografia que Antony Beevor desqualifica como "mitómana", e é sobretudo uma sobrevivente. É assim que consegue resistir ao desastroso casamento com Misha mas conservar o apelido Tchekova, apelido que depois funcionará como o seu único património - para além de um anel de diamantes - à chegada a Berlim fugida de Moscovo. De uma extraordinária beleza e capaz de assumir modos aristocráticos, consegue singrar, nos anos 20, no cinema alemão e, quando Goebbels o transforma num instrumento ao serviço da propaganda nazi, a "encantadora Olga" não se escusa. Fotografada numa recepção ao lado de Hitler, passa a ser vista em Moscovo como alguém que, ao ter acesso à elite nazi, poderia ter a maior utilidade como agente dos mesmos serviços secretos onde o seu irmão Lev tem um protagonismo crescente. Protegida pelo próprio Beria, consegue escapar às inúmeras armadilhas de uma vida sob dois totalitarismos - primeiro o nazi, depois o soviético - mas, defende Beevor, não terá sido mais do que um "agente adormecido" que nunca teve de entrar em acção. A mestria de Beevor passa menos pelos pormenores biográficos das personagens e mais pela capacidade do historiador enquadrar com precisão as vidas atribuladas dos Knipper-Tchekov no pano de fundo de uma época de extremos que terminou numa guerra de extermínio.
Desgraçadamente os leitores da edição portuguesa têm de lutar contra uma tradução que não cumpre os mínimos e torna penosa a leitura de um livro agradável, divertido e rigoroso na reconstituição do espírito do tempo tanto em Berlim como em Moscovo nessas décadas terríveis do século passado.