Pode não ser o messias, mas já é um Presidente que ficará na História

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Obama, no dia 19, a caminho da Universidade de Fairfax, Virgínia PETE SOUZA/WHITE HOUSE

1. Esqueçam o "antes" e o que virá depois. Esqueçam a análise de custos e benefícios. Não é sequer necessário ser um perito em política americana para perceber o significado do voto de domingo à noite. Basta gostar de cinema. Sabemos como funciona o Congresso desde que James Stewart/Mr. Smith resolveu ir até Washington. O sistema de saúde americano é-nos tão familiar como o desespero fatal de Denzel Washington em John Q ou as discussões no Serviço de Urgência sobre as duas medicinas que coexistem na América. Estamos em condições de entender o significado da primeira grande vitória política de Barack Obama. A primeira conclusão desta batalha que polarizou o primeiro ano do seu mandato é que o 44.º Presidente terá um lugar nos livros de História ao lado de FDR e de Lyndon Johnson. Ainda pode perder o direito a um segundo mandato ou ser responsabilizado por uma eventual derrota dos democratas nas eleições intercalares de Novembro. Pode não vir a preencher as enormes expectativas internacionais que a sua eleição criou. Mas a reforma da saúde está ao lado da Lei da Segurança Social de 1935 e da Lei que criou o Medicare em 1965, "apenas ligeiramente abaixo" da Lei dos Direitos Civis de 1964, diz o historiador David Kennedy.

Os analistas são unânimes em reconhecer que esta foi a vitória das convicções do Presidente. A segunda conclusão terá de ser a de que Obama ainda é Obama. Pode ser demasiado racional para aqueles que gostariam de vê-lo mais combativo. Demasiado apaziguador para os que gostariam que aceitasse as regras que ditam a política de Washington em vez de ter a obsessão de reformá-las. Ganhou porque se manteve fiel à sua convicção de que, em alguns momentos, é preciso ter a coragem de fazer o que está certo.

Quando se dirigiu aos representantes democratas na véspera da votação, o Presidente disse-lhes: "Este é um dos momentos em que podemos dizer honestamente a nós próprios que foi exactamente por isso que chegámos aqui. Foi por isto que vim para a política. Porque acredito profundamente neste país e acredito profundamente na democracia, e estou disposto a lutar mesmo quando é muito difícil, quando é muito duro."

"Obama provou estar disposto a arriscar tudo pelas suas convicções", escreve David Sanger no New York Times.

2. O Presidente escolheu o mais arriscado dos campos de batalha. Herdou uma crise económica de dimensões inigualáveis e duas guerras para terminar. Por que razão haveria de empenhar o seu enorme capital político numa reforma que se sabia à partida extremamente difícil e impopular?

Era impopular porque visa reparar uma injustiça que apenas afecta uma parte relativamente pequena dos americanos. Era difícil, porque nenhum outro campo de batalha forneceria tantas munições ideológicas aos republicanos contra o Presidente. Clinton não conseguira abrir a mais ligeira brecha no muro ideológico erguido pela "revolução" de Reagan.

Para Obama, era uma questão moral. A simples existência de 40 milhões de americanos sem acesso aos cuidados de saúde era incompatível com a própria ideia de América que definiu no seu discurso inaugural. Optou por pagar o preço. "Este debate longo e rancoroso infligiu danos consideráveis ao Presidente e ao seu partido", escreve Dan Balz no Washington Post. Alimentou o movimento dos tea party, permitiu que os republicanos o pintassem como um "socialista" desejoso de ver o Governo interferir na vida de toda a gente. Deixou um país fortemente polarizado. E se a questão da História está resolvida, a questão do resto do seu mandato ainda não está.

3. Os analistas lembram os precedentes históricos. Roosevelt, Johnson e Clinton viram-se confrontados com os mesmos argumentos ideológicos. Talvez à excepção do primeiro, pagaram um preço por isso.

"Johnson sabia que estava certo [sobre a Lei dos Direitos Civis]. Tinha perfeita consciência dos custos para os democratas, que eram então uma coligação que incluía os conservadores segregacionistas do Sul", escreve ainda Balz. A sua batalha "levou a um realinhamento político que durou décadas." "Se as consequências políticas deste esforço forem tão prolongadas como as de 1994, haverá um preço alto a pagar", considera William Galston da Brookings Institution. Por isso, foi tão penoso convencer os próprios democratas que esta era uma batalha que nunca poderiam perder.

E. J. Dione escreve no Washington Post que as coisas podem ser vistas de outra maneira: os democratas e o seu Presidente provaram "que são capazes de governar" e que "conseguem levar a cabo reformas fundamentais". E isso, para os americanos, é fundamental.

Mas alguma coisa o Presidente terá perdido pelo caminho: a sua promessa de levar para Washington uma forma de fazer política "pós-partidária"."Não há Estados vermelhos e Estados azuis. Há apenas os Estados Unidos da América", proclamara em 2004, no discurso que o lançou definitivamente para a ribalta política. Falhou a sua missão de "racionalizar o debate e estabelecer pontes entre as tradicionais divisões", diz Peter Beinart, um historiador liberal. "Para Obama, este combate foi transformador", acrescenta E. J. Dione. "Começou cheio de esperança de que a sua promessa de conseguir a concórdia para lá das fronteiras partidárias era possível. Mostrou que também é capaz de entrar em combate."

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