O Mozart que se esconde nas cartas

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Michal Cizek/AFP

A imaturidade brincalhona das cartas de Mozart contrasta com a maturidade da sua música. A maestrina Julia Jones e o actor Marco d'Almeida guiam-nos numa jornada, no S. Luiz, pela vida e obra do compositor.

"No andar de cima mora um violinista, no debaixo há outro, ao nosso lado mora um professor de canto que dá aulas, no último quarto do outro lado do corredor vive um oboísta. É muito engraçado para compor! Dá muitas ideias." Mozart tinha 15 quando escreveu esta carta, datada de 24 de Agosto de 1771, relatando à irmã a vizinhança musical que tinha em Milão e vários outros pormenores sobre a sua viagem a Itália. A extensa correspondência de Mozart dá-nos um retrato vivo da sua personalidade, das suas preocupações quotidianas, da sua música e do seu sentido de humor, mas também das suas angústias. Julia Jones, maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa, e Marco d'Almeida, actor bem conhecido do grande público pela sua participação em séries televisivas como "Tempo de Viver", "A Ilha dos Amores" ou "Equador", seleccionaram cartas do compositor, que vão acompanhar passo a passo uma panorâmica da sua obra. O projecto encerra o ciclo Leituras e Música promovido pelo Teatro São Luiz nos dias 19 e 20 (às 17h30) e conta com a participação da Orquestra Sinfónica Portuguesa e dos cantores João Merino (barítono) e Ana Franco (soprano).

A imaturidade e a maturidade

"Quando recebi o livro [a selecção de Cartas de Mozart, publicadas pela Cavalo de Ferro] fiquei de tal forma fascinado que me apetecia lê-las todas no concerto", contou Marco d'Almeida ao Ípsilon. Em conjunto com Julia Jones procurou, então, estabelecer as etapas de uma jornada que se inicia aos 13 anos (com cartas de 1769) e termina em 1791, o ano da morte do compositor. "Tentámos criar uma dramaturgia que mostrasse a vida de Mozart e a sua música", explicou Julia Jones. "Um dos aspectos mais curiosos é que existe um interessante contraste entre a imaturidade das suas cartas e a maturidade da sua música", refere a maestrina.

O programa inicia-se com dois andamentos da Sinfonia nº7, seguidos por uma ária da ópera "La Finta Semplice", compostas aos 13 anos, correspondente às primeiras cartas seleccionadas. "As cartas de 1774 são acompanhadas pela Sinfonia nº28 e fazemos também o segundo andamento do Concerto para Fagote, cuja melodia tem um carácter muito operático", explica Julia Jones.

Há peças como a Abertura da ópera "Idomeneo" que têm uma relação directa com cartas específicas, mas a maior parte das restantes são apenas contemporâneas ou sublinham indirectamente acontecimentos. É assim que o dueto "La ci darem la mano" do "D. Giovanni" surge significativamente depois da leitura da carta na qual Mozart descreve ao pai Constanze, a sua futura mulher: "Não é feia e até chega a ser bela.

Toda a sua beleza consiste em dois pequenos olhos pretos e numa bela figura. Não tem espírito, mas bom senso suficiente para ser capaz de cumprir os seus deveres de mulher e mãe. Não é dada ao luxo, longe disso - pelo contrário está habituada a andar mal vestida. (...) É verdade que ela gostaria de andar mais bonita e asseada, mas sem se distinguir.

E a maior parte da roupa que uma mulher precisa ela é capaz de fazer sozinha. E também arranja o cabelo sozinha todos os dias. Sabe governar a casa, tem o melhor coração do mundo - eu amo-a e ela ama-me de todo o coração - diga-me se poderia desejar uma esposa melhor?" (Viena, 15 de Dezembro de 1781).

"Mozart não escrevia assim tantas vezes sobre as suas obras. Escrevia mais sobre a sua vida e os seus amores. Quando ia a um concerto ou à ópera falava também sobre os intérpretes com comentários que nem sempre eram abonatórios", explica a maestrina. "O primo ballerino é bom; a prima ballerina é boa e dizem que é uma besta, mas na verdade ainda não a vi de perto;  (...) A prima donna, nada má, acho que já é velhota, uma besta, mas não canta tão bem como actua" (26 de Janeiro de 1770).

Julia Jones está convencida de que o compositor poucas vezes mostrava a suas verdadeiras emoções na correspondência. "Os seus pensamentos e sentimentos mais profundos eram transmitidos pela música. Escrevia à família de forma extrovertida e exuberante, num tom que não corresponde à atmosfera íntima da sua música. Nas cartas mostra mais o seu lado infantil, não o homem maduro ou o músico maduro."

Marco d'Almeida acrescenta que a imaturidade se reflecte também na relação que Mozart tinha com o pai, pedindo-lhe autorização para fazer coisas quando já tinha 20 anos. Um dos aspectos que mais fascinou o actor foi porém "o humor muito particular" do compositor e dá o exemplo da despedida que faz numa carta à irmã: "beijo as mãos à Mamã, e à minha irmã envio um beijinho, e serei sempre... mas serei o quê?... serei sempre o mesmo palhaço, Wolfgang na Alemanha, Amadeo de Mozartini em Itália" (Milão, 10 de Fevereiro de 1770).

Por outro lado sentiu-se impressionado pelo desespero expresso nas últimas cartas. "Torna-se tocante perceber o desespero com que se dirige aos amigos a pedir dinheiro. Há uma carta onde revela que está cheio de fome," conta Marco Almeida. "Quem me dera poder enviar-te mais dinheiro", escreve a Constanze a 4 de Julho de 1791. "Por enquanto tens aqui 3 réis, amanhã ao meio-dia envio-te mais, até lá sê feliz, alegre - tudo correrá bem - beijo-te 1000 vezes - estou demasiado fraco de tanta fome."

Depois da leitura das Marco d'Almeida mudou substancialmente a visão que tinha do compositor. "O filme 'Amadeus' [Milos Forman] deixa-nos para sempre uma imagem de Mozart marcada pelo riso histriónico, pela figura de fanfarrão e do rebelde, mas uma carta é sempre algo íntimo. A leitura revelou-se um lado que desconhecia, muito mais humano", diz. "A peça do Peter Shaffer ou o filme de Milos Forman contêm já uma interpretação, nas cartas temos a própria voz de Mozart. São um instrumento de trabalho precioso para qualquer actor."

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