Epifanias rock'n'roll de quatro californianos

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Chamavam-se The Muslims e foi sensata a mudança de nome depois de o público desatar aos berros de "Jihad!" nos concertos; hoje são Soft Pack

Eram nove da manhã e o guitarrista Matty McLoughlin, acabado de acordar, tinha uma câmara apontada à cara. O novo álbum dos Soft Pack saía naquele dia, 30 de Janeiro, e a banda de San Diego, entretanto mudada para Los Angeles, tinha a agenda preenchida. Nesse dia, daria dez concertos e o primeiro iria começar pouco depois de Matty ser acordado pelas luzes da câmara. Não teve que andar muito. No jardim de sua casa, os Soft Pack acordaram a vizinhança. "Eram 9h30 da manhã e eu a pensar 'o que estamos aqui a fazer?' Achava que ninguém iria aparecer". A memória é de David Lantzman, o baixista da banda que se fundou como The Muslims e que achou sensato mudar de nome quando começou a receber ameaças e a actuar perante público aos berros de "Jihad!" Essa história fica para depois.

Estamos portanto no jardim de Matty McLoughlin. São 9h30 da manhã e David, como nos recorda, pensa que acabou de chegar de uma digressão pela Costa Oeste dos EUA, que não dormiu nada essa noite e que dar um concerto a horas madrugadoras, sem público e só para as câmaras filmarem, era a última coisa que quereria fazer. Quão errado estava.

"Apareceram umas 40 pessoas e foi incrível. Tínhamos amigos a ajudar-nos e fomos de uma precisão militar. Toda a gente pegava no equipamento em fila, transportava-o para a carrinha, seguia para o próximo concerto".

As dez actuações num dia que assinalaram o lançamento do primeiro álbum dos Soft Pack foram gravadas e estão disponíveis em vídeo (podem vê-lo em vimeo.com/9157820). A ideia partiu de um amigo, um promotor de Los Angeles. "Foi ele que organizou tudo. Tem um autocarro escolar movido a óleo vegetal e guiou-nos nele pela cidade".

No vídeo, vemos a bailarina havaiana de plástico que adorna o tablier do autocarro, vemos a trupe que acompanha os Soft Pack seguir para concertos de "cinco, seis músicas" em lojas de discos, em jardins, em set acústico em Venice Beach enquanto o sol desaparecia no horizonte, em casa de Kevin Stuart, baterista dos Crystal Antlers que viu a sua sala alegremente transtornada por pessoal dançando, mergulhando sobre os demais e imitando, em versão rock'n'roll, o Lionel Richie de "Dancing on the ceiling". "Foi memorável. Estou muito feliz por termos tido oportunidade de o fazer", confessa Lantzman. Hoje, não a teriam.

Paradoxo

Quando falamos com o baixista dos Soft Pack, a banda está bem longe de Los Angeles, em Colónia, Alemanha. Será ali o primeiro concerto da digressão europeia, fora do Reino Unido, e David fala-nos do habitual: estão a chegar à sala de concertos para fazer o teste de som, os concertos em Inglaterra foram óptimos - "os ingleses gostam de 'apanhar' as bandas rapidamente, bem mais rápido que nos Estados Unidos" - e os Soft Pack estão entusiasmados. Desde que editaram o novo álbum, caíram elogios na imprensa, do "New York Times" à "Mojo", estrearam-se em prime-time televisivo no David Letterman Show, foram em Fevereiro uma das bandas mais "blogadas" do mundo, segundo o site agregador de blogues Hype Machine.

"The Soft Pack" é um disco de rock'n'roll eufórico onde cabem as guitarras angulares dos Franz Ferdinand, as melodias escapistas dos Feelies e o negrume subterrâneo do garage rock. Mas nele, onde há canções de bota a bater no chão freneticamente e refrão destinado a colar-se à memória, deparamo-nos com um quase paradoxo. Esta música, que ora parece reflexo solar banhado em luz, ora se torna faiscante de cave e suor, canta outras coisas. Canta a desistência do amor, canta a fuga para qualquer outro lugar que não aquele onde estamos, canta "I think I'm gonna die before my time". Os Soft Pack, ao contrário do que nos diz a sua música, não estão felizes. Ou melhor, Matt Lamkin, guitarrista, vocalista e compositor, canaliza para as suas canções uma insatisfação, uma sensação de queda. O segredo dos Soft Pack está na forma como escolhem atropelar a depressão com um sorriso irónico (aprenderam com os Modern Lovers de Jonathan Ritchman) e dose cavalares de anfetaminas rock'n'roll (andaram em digressão com os Black Lips e isso marcará qualquer um).

"Muita da música rock lida com agressão e tensão", dir-nos-á David Lantzman, antes de explicar que os Soft Pack são banda que procura transpor para álbum uma "sensação de concerto" - "gravámos quase tudo ao vivo" -, antes de se lançar numa reveladora cartografia de referências.

"Em San Diego tínhamos os Rocket From the Crypt, uma óptima banda. E somos todos fãs de Jonathan Ritchman, por causa do seu humor e pela forma como consegue capturar um sentimento: tem um nível de honestidade a que nos tentamos também agarrar". Ao mesmo tempo, olham para o outro lado do Atlântico: "Os Smiths são consensuais na banda, adoramo-los e é natural que sobressaia algo deles. Eu gosto de Joy Division e descubro pormenores um pouco 'Peter Hooky' na forma como toco o baixo. E o Matt [Lamkin] é fanático pelos The Fall".

Com algo de especial

Voltemos ao vídeo dos 10 concertos num dia. Nas suas camisas e pólos, os Soft Pack, entre público e amigos que os acompanham, são tipos com o aspecto menos rock'n'roll possível. Olhamos para a capa do seu álbum e lá estão eles novamente, em pose veraneante mais apropriada para recordação de férias que para um disco como este. "Gostamos dessa foto, gostamos do céu azul", defende David. "Somos uns tipos informais e gostamos da praia. Somos da Califórnia, percebes?"

Claro. Percebemos que os Soft Pack são tipos porreiros, sem nada de extraordinário, que encontraram um qualquer ponto de equilíbrio que transformou a sua música, ela sim, em algo extraordinário. Não são dados a grandes proclamações. Não está na sua natureza polemizar.

Quando se juntaram acharam que The Muslims seria um nome interessante. Editaram alguns singles e EPs em 2008, mas as canções foram rapidamente secundarizadas. O nome era aquilo que chamava a atenção. "Tivemos algumas dores de cabeça por causa disso", conta David Lantzman. "Foi muito desapontante", desabafa. "Os Silver Jews nunca tiveram problemas com o nome... Não percebemos porque houve gente a sentir-se ofendida". Sendo quem são, quatro tipos de San Diego - "californianos, percebes?" -, não tomaram o nome por cavalo de batalha.

"Toda essa questão diz mais sobre a forma como a América lida com a questão muçulmana que sobre nós próprios. Até seria interessante estudá-la, mas interessa-nos fazer música, não um manifesto suportado num nome de banda. Portanto, mudámos de nome e continuámos".

Foi como Soft Pack que os descobrimos. E é enquanto falamos do que os Soft Pack serão depois disto que percebemos o que há de especial, ali bem no coração desta música. David Lantzman disserta sobre o disco agora editado: "Acho que é uma documentação justa do que somos nesta altura. Há ali qualquer coisa, um dedo no pulso - conseguimos apanhar isso". Mas David quer mais. "No futuro, queremos diminuir a distância".

Diminuir a distância? "Conheces aquela sensação de quando 'agarras' uma nova ideia? De certeza que já a experimentaste em concertos. A banda faz qualquer coisa diferente, os músicos olham uns para os outros. Estão entusiasmados, tudo soa maravilhosamente e dás por ti a exclamar 'Uau! Que raio acabou de acontecer?' Queremos mais 'que raio acabou de acontecer´?' no próximo disco. Precisamos de mais 'que raio acabou de acontecer?'".

É isto: os Soft Pack, tipos discretos e informais, querem epifanias rock'n'roll.

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