E se Ivanov formos nós?

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Ivanov está aí, no meio de nós: haverá sempre pessoas assim, sublinha esta produção da Truta, no meio de nós: haverá sempre pessoas assim, sublinha esta produção da Truta, no meio de nós: haverá sempre pessoas assim, sublinha esta produção da Truta Miguel Manso

O homem não é um mecanismo fácil de desmontar, diz Tónan Quito. "Ivanov" é a Truta a tentar desmontá-lo, com Tchékhov, no Teatro Maria Matos.

Em 1887, Anton Tchékhov (1860-1904) exercia medicina na capital da Rússia quando recebeu uma encomenda do Teatro de Moscovo para escrever uma comédia em quatro actos. Demorou dez dias a terminá-la, mas a interpretação em jeito de vaudeville horrorizou-o. Os actores não sabiam o texto e diziam disparates. Revoltado, reescreveu a peça. Um ano depois, "Ivanov", agora um drama em quatro actos, fez um enorme sucesso no Teatro de São Petersburgo e tornou-se um microcosmos do estilo e dos temas das obras que Tchékhov viria ainda a escrever.

É a segunda versão de "Ivanov" que a Associação Cultural Truta leva à cena, até 27 de Março, no Teatro Maria Matos, em Lisboa. "Estava na pilha dos textos que gostaria de fazer", diz Tónan Quito, o encenador. "Propus à Truta e eles aceitaram. Ficámos entusiasmados, porque em 2008 tínhamos feito 'A Resistível Ascensão de Arturo Ui' [de Bertold Brecht, com encenação de Joaquim Horta], sobre a relação de um indivíduo com a sociedade e a vida política. 'Ivanov' é sobre um indivíduo mas face a uma sociedade mais pequena, a família". O desafio - "e a dificuldade", acrescenta Quito - "de representar Tchékhov vem daí, de perceber o que é que isto quer dizer, que relações são estas. O que está por trás, o que os silêncios dizem, o que não está escrito. As palavras já valem por si, agora é descobrir a outra peça que está por baixo".

Nikolai Ivanov (interpretado por Pedro Lacerda), uma espécie de quintessência da melancolia das classes altas russas, é um funcionário da administração dos assuntos dos camponeses; endividado e sem dinheiro para pagar aos trabalhadores da sua propriedade, vive atormentado por conflitos internos, pelas dívidas e pressões externas, pela falta de gosto pela vida e pela falta de gosto pela mulher, Anna Petrovna (Rita Durão), uma judia que se converteu à igreja ortodoxa russa para se casar com ele e que, sem saber, sofre de tuberculose. O médico aconselha Ivanov a levá-la para a Crimeia, a fim de se curar. Mas Ivanov não tem dinheiro para isso. Nessa noite, deixa a mulher sozinha em casa e vai a casa dos Lebedev com o seu tio, o conde Matvei Chabelski (António Fonseca), um velho cómico. Na festa dos Lebedev, estão também presentes Marfa Babakina (Carla Galvão), uma jovem viúva e proprietária rural, e Dimitri Kossykh (Tónan Quito), um funcionário fiscal. Ivanov parece interessar-se por Sacha (Paula Diogo), filha dos Lebedev. E Tchékhov começa.

Cinzento é bom

As experiências humanas, o amor e as relações familiares que Tchékhov sempre retratou nas suas peças começam a ser dissecadas na festa dos Lebedev.

"Gosto muito da literatura russa, por causa dos caracteres, das personalidades", diz o encenador. "É redutor ver esta peça só do ponto de vista do protagonista, da figura central, porque há uma quantidade de gente que alimenta Ivanov, e todos se vão alimentando uns dos outros. Todos eles com os seus problemas e o seu carácter".

Em "Ivanov", o estado de espírito e o carácter das personagens alteram-se ao longo da peça. A exploração dos limites de cada situação é o objectivo desta encenação da Truta. "Queríamos lembrar que nós não somos iguais em todas as situações, nem sempre fazemos coerência. Comportamo-nos de maneiras diferentes em várias situações", justifica Quito. "Trabalhámos muito os contrastes. Extremámos as situações para percebermos o que é que está no meio. Pusemos as personagens em confronto umas com as outras".

O tema da dramaturgia de Tchékhov é muitas vezes o modo de vida do povo russo, que o autor tão bem conheceu, por ter sido um proprietário rural. Para Tónan Quito, esta peça justifica-se nos dias de hoje. "Ivanov preocupa-se com os seus problemas, está desencantado com a vida. Temos montes de sonhos quando somos novos. Mas avançamos, há um momento em que parece que nada faz sentido, e quebramos. Uns não quebram e continuam. Outros quebram mesmo", como Ivanov. "O problema do Ivanov - a falta de dinheiro e as dívidas - está aí", acrescenta Quito. "Haverá sempre pessoas assim. Pegando numa deixa de Ivanov: 'Quanto mais cinzento e monótono for o pano de fundo, melhor.' Significa 'leva a tua vidinha com calma, sem grandes alaridos'. Não há nada mais actual do que isso. Fará sempre sentido fazer Tchékhov. Muito sentido".

Sendo a primeira peça escrita por Tchékhov, "Ivanov" aponta para várias direcções, retomadas nas peças seguintes, como "A Gaivota", "O Cerejal" ou "As Três Irmãs". "Parece um esboço. Porque não fazer também da própria encenação um esboço? Despir a encenação, a interpretação estar mais rarefeita. Contrastar algumas coisas exageradas com outras mais despidas, deixando que as palavras tenham força. Esta é a nossa interpretação, há 500 outras", explica o encenador.

De resto, corrige Tónan Quito, isto que está agora à vista no Maria Matos nem é bem uma encenação: "A encenação se calhar só surgiu nos últimos cinco dias, para coordenar a equipa técnica e os actores. É mais uma direcção, pegar num grupo de pessoas e dirigi-las para um sítio. Tínhamos ideias, mas foi tudo feito colectivamente. A produção trabalhou sempre connosco. Os actores improvisaram todos os dias. Íamos falando e tentando perceber as propostas deles. No fundo é um diálogo".

À partida, a companhia estabeleu que não iria fazer época. "Decidimos logo não retratar o século XIX. Pensámos este texto com as nossas cabeças de hoje, à luz dos dias de hoje. Obviamente fizemos uma escavação no século XIX para tentar perceber como foi tudo isto. Mas estes corpos são corpos de agora".

Embora a tradução usada pela Truta date de 1965, o texto também foi adaptado ao português actual. "Tornou tudo mais claro, a linguagem não está tão pesada. Cortámos algumas coisas do texto original para a compreensão ser mais fácil. Na improvisação, os actores foram escolhendo aquilo que achavam que fazia mais sentido", conta Tónan Quito.

Música klezmer e um cão de loiça

Há um relógio redondo no meio do papel de parede que ocupa o fundo do palco. Ao fundo, à direita, um piano vertical e um cão de loiça. Mesas e cadeiras de madeira estão espalhadas pelo palco, branco. Os actores esperam sentados a sua vez de entrar em cena. Quito confessa que dar a ver "os lados do palco foi uma opção", mas que "não está a funcionar": "Não se percebe bem se é espaço de acção ou não. A ideia de o espaço estar sempre à mostra é: 'esta peça está a passar-se neste teatro'. Não queremos fazer uma caixinha preta para contar esta historiazinha.

Queremos contar esta história neste espaço que é o Teatro Maria Matos. Interessou-nos fazer uma área de jogo: 'Estão a representar para mim', pensa o público".

Além das dez personagens da peça, a Truta fez entrar mais quatro. São os músicos, que tocam ao vivo. "Como há uma festa e um casamento, achámos que fazia sentido pôr música. Pensámos em contratar uma banda russa ou ucraniana que tocasse em casamentos. Encontrámos uma banda de moldavos mas não estava disponível. Então o nosso produtor fez uma pesquisa e encontrou os Melech Mechaya", explica Quito.

Os Melech Mechaya são um grupo de música klezmer (uma tradição musical com raízes na cultura judaica do Leste europeu) que nasceu em 2006. "Não sendo exactamente aquilo que eu tinha imaginado, foi uma sorte tê-los aqui. Fizemos uma surpresa aos actores: os Melech entraram num ensaio corrido sem os actores saberem e correu lindamente. Eles foram muito simpáticos, procuraram repertório russo e ucraniano. Dei-lhes umas ideias gerais sobre o que queríamos e eles foram propondo os temas", conta o encenador. O clarinete, o violino, o contrabaixo e a percussão dos Melech Mechaya compõem o fundo musical para a festa dos Lebedev e para o casamento de Ivanov e Sacha.

"Ivanov" tem "uma coisa diferente das outras peças de Tchékhov", conclui Tónan Quito. "Há uma solidão maior, porque não vem ninguém de fora influenciar aquela normalidade. É um grupo de dez personagens com os seus problemas. É muito fechado, nota-se a solidão e a tristeza daquelas vidas. É uma peça sobre decisão: decidir continuar a viver, decidir acabar, decidir partir, decidir mudar. O texto dá muitas pistas. As pessoas não são mecanismos fáceis de desmontar, há contradições. Nesta peça as pessoas estão a tentar viver a sua vidinha".

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