Retrato de lolita (com tirano em fundo)

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Em "The Trip" Laetitia Sadier quis ser tão essencial quanto possível em cada canção

Durante anos, Laetitia Sadier foi a voz dos Stereolab e não pôde dar vazão às suas canções porque o tirano do ex-namorado queria tudo para ele. Agora, a solo, escolheu para produtor outro tirano, Richard Swift, e voltou ao indie de guitarras de há 20 anos.

Não há muitas mulheres como Laetitia Sadier.

A francesa que durante anos foi vocalista dos ingleses Stereolab e agora enceta carreira a solo com "The Trip", disco que apresenta esta quinta na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa (e, nos dois dias seguintes, na Oficina Municipal do Teatro, Coimbra, e no Passos Manuel, Porto, respectivamente), é um caso raro na pop: em disco conseguia ter simultaneamente a candura de uma garota absorta na sua boneca e a raiva mal contida de uma deputada do Bloco de Esquerda, a coqueterie das burguesas auto-conscientes e um cérebro politizado, que trazia às suas palavras aquela ligeira revolta que torna uma mulher de voz doce um passaporte para o doce inferno.

Este raro e feliz encontro das melhores qualidades femininas trazia à música dos Stereolab uma espécie de candura férrea, de doçura subversiva que, em conversa, se confirma. Laetitia é capaz - imagine-se - de interromper uma frase em que lança anátemas anti-capitalistas para dizer "Desculpe, estou a chupar um chupa-chupa" num inglês pervertido por um encantador sotaque francês - sendo que depois segue caminho entabulando conversa sobre o Marx que não leu e o osso da música indie.
Repete-se: "Desculpe, estou a chuchar um chupa-chupa". Isto não é o início de "Lolita", de Nabokov, não é  uma transcrição de uma inquirição do caso Casa Pia, não: isto é Laetitia no seu normal. Aquela garganta foi, digamos, abençoada pela graça.

Que se pode esperar de Laetitia a solo, quando de "The Trip" só se conhecem vídeos de actuações ao vivo no Youtube? Bem, temos sempre a referência do passado.

Os Stereolab eram uma espécie de nave espacial vinda de um planeta regido pelas leis harmónicas de uns Beach Boys movidos pela órbita repetitiva dos ritmos motorika do krautrock, um planeta habitado por DJ futuristas e Esquivel, em que a tecnologia vintage combinava com a experimentação e a mais baixa cultura da música de elevador para criar um novo som, já não  música de elevador mas sim música de teletransporte.

Havia guitarras eléctricas, órgãos Farfisa, cordas, samplers, tudo ao serviço dessa nova música. Laetitia, mais do que cantar, ciciava. E assim os Stereolab eram, além de uma banda pop experimental, um universo de sensualidade que fez muito pelas hormonas dos tão abençoados de neurónio quanto de testosterona.

Mas essa Laetita já era. A actual foi à procura "do osso das canções".
"A única preocupação que eu tinha com este disco", diz-nos ao telefone, em digressão, "era conseguir ser tão essencial em cada canção quanto possível". Por essencial entenda-se filtrar o que não interessa: "Tudo o que era decorativo foi posto fora. Não é que todas as canções estejam completamente no osso, ainda existem camadas, mas impus-me que todas tinham de ter conteúdo emocional auto-sustentável nos acordes e na melodia".

Laetitia, caso raro na pop, é extremamente articulada e ponderada em cada palavra. Coisa ainda mais rara: apesar do seu charme, soa sempre sincera ou plenamente inteira em cada resposta.

Cada canção uma luta

Admite, por exemplo, um certo susto com a sua actual situação: durante anos, limitou-se a dar voz às canções de outros e mesmo a sua voz, numa banda tão particular quanto os Stereolab, era mais um instrumento. "Sempre soube que para fazer canções tinha de o fazer fora dos Stereolab porque ali o Tim [Ganes] queria o controlo total. Não valia a pena bater com a cabeça na parede, era assim que era", diz, sem que o seu tom de voz denote quaisquer problemas com a sua banda anterior. Que, aliás, pode vir a ser a sua banda do futuro: "Não sei se os Sterolab vão voltar. Estamos em pausa, não há datas, não há planos. É um hiato e há hiatos que duram 20 anos. Não depende de mim, porque não sou eu que faço as canções, mas da minha parte não me apetece dizer que nunca voltarei aos Stereolab".

Quando, encetando caminho pela pop-truca-truca, lhe perguntamos se a razão de os Stereolab terem entrado em coma se deve ao arrefecimento da sua relação amorosa com Ganes, ela responde com um à vontade surpreendente em figura tão pouco propensa a pôr-se em bicos de pés: "Acho que não. Nós já estávamos separados há muitos anos. E entre nós sempre esteve a música em primeiro lugar. Foi sempre a música, mais do que tudo o resto". Como dizia o outro: pimba.

Há um detalhe curioso - diríamos quase sádico - na menina Sadier: sendo nitidamente feminista e invulgarmente fértil em ideias de pendor político, ela acaba sempre por se juntar a um pequeno ditador. Nos Stereolab tinha Tim Ganes a guiá-la. Agora, em "The Trip", teve o menino prodígio Richard Swift - um pequeno tiranete de estúdio - a produzir. "Tenho de dizer que ele esteve muito bem comportado, mas também naquela situação não podia ser muito impositivo: o disco era meu". Swift, diz Sadier, teve a delicadeza de deixar a cargo da menina "todas as escolhas criativas", mesmo quando ela gostava das ideias dele. "Ele é muito talentoso e muito profícuo, o que eu não sou. Para mim uma canção é uma luta. E tecnicamente é muito, muito bom".

Mas por mais que Laetitia lute com as canções, elas não parecem um ninho de gatos - continuam a emanar mel, mesmo que agora se aproximem mais da indie pop com que os Stereolab começaram. "O indie nunca foi acerca de entreter as massas", proclama a senhorita Sadier. "Era acerca de fazer o que quisesses até que conseguisses legitimar o que fazias. Era muito político, nesse sentido, sem ser académico".

Por isso, nada melhor do que voltar às canções primárias, guitarra e voz, mais voz do que nunca: "Agora não tenho uma banda por trás, tenho de encher mais as canções, pôr-me em bicos de pés, que é coisa que nunca fiz".

Não faz mal. No fundo isso é o equivalente musical ao seu ideal político: que cada um "reclame o seu poder individual em vez de o atribuir ao padre, ao publicitário, ao marido", diz ela em fim de conversa, mesmo antes de concluir que "nesta época devíamos ter um pouco mais de consciência e organizar-nos para não sermos compradores ou espectadores compulsivos" e que "isso não pode vir de cima, tem de vir de baixo".

Pelo meio da frase pede desculpa: estava chupar um chupa-chupa.

Política e doces: isto é Laetitia Sadier no seu dia-a-dia. Deve ter sido bom ser Tim Gane.

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