Jonah Lehrer abre o nosso cérebro

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Uma tarde, quando Jonah Lehrer (n. 1980) se apercebeu que estava há demasiado tempo parado na ala de um supermercado a olhar para as dezenas de variedades de flocos de cereais para o pequeno-almoço, e que mesmo assim continuava indeciso entre escolher um com sabor a mel ou um outro a que já tinham juntado pedaços de maçã, pensou que era tempo de acabar com aquele tipo de indecisão (que lhe acontecia frequentemente) e que deveria saber a fundo o que se passava no seu cérebro durante aqueles momentos. O resultado desses estudos, baseados nas mais recentes descobertas da neurociência sobre o assunto, foi publicado em livro; a tradução portuguesa, "Como Decidimos", foi por cá editada pela Lua de Papel.

Mas para o "menino-prodígio da divulgação científica" norte-americana (como lhe chamou o "The New York Times"), esta não foi uma aventura que tivesse começado com um salto no escuro, pois o jovem Jonah Lehrer, que é também o autor de "Proust Era um Neurocientista" (Lua de Papel, 2009), é doutorado em Neurociências e fez parte da equipa de Eric Kandel, Nobel da Medicina em 2000 - mas já antes graduara-se em Literatura Inglesa e estudara também em Oxford, com uma famosa bolsa que é apenas atribuída a estudantes de excepção. Jonah Lehrer é editor da "Wired" e colaborador de publicações científicas de referência como a "Nature" e a "Seed", para além de escrever regularmente em "The New York Times", "The New Yorker" e "The Washington Post".

Criaturas racionais?

"Como Decidimos" é um livro sobre como é que a mente humana escolhe o que fazer, pois da perspectiva do cérebro a linha que separa uma boa decisão de uma decisão catastrófica é bastante ténue. Mostrando inúmeros exemplos reais, e sem recorrer a desnecessários hermetismos científicos, Lehrer abre um pouco a "caixa negra" que é o nosso cérebro e tenta mostrar como é que ele funciona quando somos chamados a decidir. E começa logo por nos pôr alerta para o que aí vem, ao recordar-nos que a teoria da racionalidade humana - que trazemos desde os antigos gregos e que nos diz que quando tomamos decisões se parte do princípio que analisamos conscientemente as alternativas e ponderamos os prós e os contras, que somos seres ponderados e lógicos - está errada. Segundo ele, não estávamos destinados a ser criaturas racionais, pois o nosso cérebro compõe-se de um emaranhado de zonas, muitas delas ligadas à produção de emoções. Quando tomamos decisões o cérebro "transborda de emoção, impelido pelas suas inexplicáveis paixões". Mesmo quando tentamos, com muito esforço ser razoáveis e controlados, os impulsos emocionais influenciam, sem o sabermos, a avaliação decisória. Parece haver um combate entre a lógica e a emoção, "o cérebro reptiliano combatendo os lobos frontais". A selecção natural e a evolução deram-nos um cérebro pluralista. Por vezes, precisamos de racionalizar as nossas opções e analisar as possibilidades. Outras vezes, não há melhor do que ouvir as nossas emoções. O segredo da boa decisão está em saber quando usar esses diferentes estilos de pensamento, mas para isso precisamos de saber como funciona a nossa mente.

O homem sem emoções

A fé cartesiana na razão tornou-se numa espécie de princípio básico da vida e da filosofia moderna. O que quase nos pode levar a estabelecer um corolário: "se as nossas emoções nos impedem de tomar decisões racionais, nesse caso o melhor será não termos nenhumas [emoções]". Platão chegou a imaginar uma utopia em que a razão determinava tudo: uma sociedade mítica que era como uma "república da razão pura". O cérebro emocional foi sendo depreciado, e as nossas emoções foram-se transformando numa espécie de bode expiatório de todas as más decisões tomadas. Mas ao analisarmos o cérebro, a verdade é muito mais interessante, pois diz Lehrer que "se não fossem as nossas emoções, a razão não existiria".

Foi o neurologista António Damásio quem provou "o erro de Descartes". Um dia, entrou-lhe no gabinete um doente, Elliot, a quem uns meses antes tinha sido extraído um pequeno tumor do córtex cerebral. A operação mudara-lhe a vida: as tarefas rotineiras demoravam-lhe agora várias horas a cumprir, ele passara a reflectir sobre todos os pormenores irrelevantes (escolher uma caneta preta ou vermelha poderia demorar horas, a escolha de um restaurante levava-o a comparar os menus, os lugares sentados, a iluminação, e depois quais eram os que tinham menos gente, mas tudo para no final ser incapaz de escolher), perdeu o emprego, foi enganado por um vigarista, a mulher pediu o divórcio. Mas segundo Damásio o seu QI não sofrera alterações, o seu intelecto "apenas" se mostrava incapacitado de tomar boas decisões. O que acontecera ao cérebro de Elliot? Damásio começara a notar que o doente falava de si próprio "como um espectador calmo e distanciado", e os amigos descrevem-no, depois da cirurgia, como alguém que tinha ficado "estranhamente desprovido de emoção", sem qualquer sentimento de frustração, impaciência ou tristeza, indiferente ao trágico caminho que a sua vida levava. Depois de vários testes neurológicos, chega a conclusão: Elliot não sentia mesmo nada, tinha "a vida emocional de um manequim", diz Jonah Lehrer. Mas uma pessoa sem emoções devia então ser capaz de tomar as melhores decisões! Ou não seria isto verdade, como sempre se pensou? Damásio conclui que as emoções são uma parte importante do processo de tomada de decisão. Ao perdermos as emoções, as decisões mais corriqueiras tornam-se impossíveis. Descartes estava errado. "Um cérebro que não consegue sentir, não pode decidir", diz Lehrer. Foi com base no estudo deste doente e de muitos outros, que Damásio começou a compilar um "mapa do sentimento", localizando as áreas específicas do cérebro que são responsáveis pela geração de emoções. E ao contrário do que se pensou durante grande parte do século XX, o crescimento do córtex frontal ao longo da evolução da espécie humana não nos transformou em seres puramente racionais, capazes de ignorar os nossos impulsos ("somos a única espécie capaz de nos revoltarmos contra sentimentos primitivos e de tomar decisões imparciais e deliberadas"). Sabe-se agora que uma grande parte do córtex frontal está ligada à emoção.

A intuição do capitão

Mas o processo de pensamento exige também intuição, e é graças a ela que conseguimos processar toda aquela informação que não conseguimos compreender. Nenhum programa de computador consegue escolher o actor que deve fazer de vilão num filme, e nenhum robô consegue chutar uma bola de futebol e fazer golos com o "feeling" de Cristiano Ronaldo. Tudo isso porque as máquinas são desprovidas de intuição.

A propósito dessa faculdade humana, Lehrer conta uma história: em 1991, em plena operação "Tempestade no Deserto", quando os primeiros Marines se aproximavam da fronteira do Kuwait, o capitão Riley controlava os ecrãs do radar a bordo de um contratorpedeiro britânico. O capitão Riley tinha de vigiar todo o espaço aéreo em redor. Numa madrugada de Fevereiro, Riley notou um impulso num radar. O cálculo da trajectória levava-o directamente à escolta naval. Durante a noite, Riley observara vários destes sinais, mas este levantou-lhe suspeitas. Ele não sabia porquê. O ponto intermitente encheu-o de medo. Continuou a observá-lo durante mais quarenta segundos, o ponto aproximava-se do navio de guerra USS Missouri. Se o ponto fosse para abater, Riley teria que o fazer nesse momento, pois se fosse um míssil iraquiano morreriam centenas de marinheiros.

O capitão Riley debatia-se com um problema. O ponto intermitente localizava-se no espaço aéreo que era frequentemente atravessado por jactos americanos. Nas últimas semanas observara dúzias deles a percorrerem uma rota quase idêntica. O impulso deslocava-se à mesma velocidade dos jactos, no ecrã assemelhava-se exactamente a um jacto, e para complicar a decisão, ele sabia que os pilotos desligavam as identificações electrónicas nos voos de regresso. Mas o tempo de decisão acabava e Riley emitiu a ordem de disparo. Olhava agora o ecrã do radar, vendo os dois mísseis que disparara em direcção ao objecto desconhecido. Aguardou o impacto. Os sinais desapareceram do ecrã. Se fosse um avião americano, a sua carreira estava acabada e ele poderia ser levado a tribunal marcial. Tempo depois o comandante do navio perguntou a Riley como podia ter a certeza que atirara contra um míssil iraquiano e não contra um caça de combate. "Por instinto, sir", respondeu o capitão. As quatro horas que se seguiram foram as mais longas da sua vida, viu e reviu as gravações e continuou a não conseguir identificar o alvo. Mas a notícia chegou: fora abatido um míssil Silkworm iraquiano.

Acabada a guerra, um psicólogo cognitivo dos Marines percebeu a razão porque Riley considerara perigoso aquele sinal. O motivo era subtil: o capitão habituara-se, inconscientemente, a um padrão dos aviões no radar (eles surgiam logo a seguir à linha de costa), enquanto o míssil surgiu muito depois. A decisão de Riley foi correcta por causa da sua análise intuitiva. A intuição salvou a vida a muitos marinheiros.

Jonah Lehrer apresenta muitos destes exemplos reais para esclarecer questões como "a compulsão do jogo", "sensações negativas", "aversão à perda", "uso da razão", "bloqueio sob pressão" ou o "debate interior". Mas de tudo isto há uma conclusão a tirar: não existe uma receita secreta para a tomada de decisões, há apenas a noção de evitar erros. Para isso, entre outras coisas, devemos perceber que quando temos que tomar decisões importantes para nós (a compra de um carro, de mobiliário, de uma compota), ou quando temos que decidir numa área em que temos já muita experiência, devemos deixar-nos levar pelas emoções; quando os problemas são novos ou simples, a razão costuma ser melhor conselheira.

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