"Os Óscares organizam o caos"

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"Brokeback Mountain"

Robert Thompson, especialista em cultura popular, acredita que os prémios da Academia serão um farol: o nosso momento de comunhão pop num mundo fragmentado, em constante mudança

A cada ano, tenta-se fazer uma leitura sobre os Óscares - a relevância, o que dizem sobre a América. "Continua a ser uma cerimónia centrada nos EUA. Quando alguém vê a cerimónia na China, é uma grande cerimónia de prémios americana", diz Robert Thompson, director e fundador do Centro Bleier para a Cultura Popular da Universidade de Syracuse. "Não quero ser totalmente cínico. Os filmes de Hollywood são, desde há um século, uma das produções culturais mais versáteis do mundo", explica este especialista na forma como os produtos culturais moldam a cultura contemporânea. "Hollywood lembra-me a helenização da Europa e da Ásia depois da morte de Alexandre, o Grande, em que uma língua e uma cultura se espalharam por uma parte do mundo. Hollywood é consumível em grande parte porque nasceu quando o país estava cheio de recém-chegados que ainda não falavam inglês." Agora, os Óscares podiam perder o seu poder agregador, o seu brilho. Mas Thompson acredita que, pelo contrário, eles serão um farol, o nosso momento de comunhão pop num mundo em rápida mudança.

  

Nos últimos 20 anos, a cultura popular mudou. O que significam os Óscares hoje?

Primeiro há que dizer que o principal papel dos Óscares é o de dispositivo promocional. Há a ideia de que é a indústria a reconhecer as criações dos seus pares. É verdade. E sabemos aquilo de que as pessoas comuns gostam porque vemos isso nas bilheteiras. Mas os Óscares são sobretudo uma ferramenta promocional da indústria.

Nos últimos 20 anos as coisas mudaram e nos últimos anos tivemos filmes muito bons de que a maioria das pessoas não tinha ouvido falar até serem nomeados. Nesse sentido, os Óscares têm ajudado a dar a conhecer trabalhos feitos fora dos EUA ou pequenos filmes independentes. Mesmo "O Segredo de Brokeback Mountain": foi visto por muito mais pessoas graças ao facto de se ter saído tão bem nos Óscares.

Mas indissociável dos Óscares é a sua transmissão televisiva, e nesses anos em que filmes menos conhecidos são as estrelas da cerimónia, as audiências são mais baixas...

Isso não é surpreendente e por isso é que este ano temos dez nomeados para Melhor Filme. É verdade que se não conhecermos quatro dos cinco nomeados, sentimo-nos menos envolvidos. Mas as más audiências envolvem outros elementos. Em geral, se as audiências baixaram nos últimos 20 anos isso deve-se ao facto de passarmos de ter quatro canais à escolha para 300 canais à escolha... Assim, tudo perde audiências.

Não acha que a Internet, enquanto mais um fornecedor de informação sobre celebridades, contribui para a perda do brilho dos Óscares?

Não acho que esteja a causar a baixa das audiências - não nos EUA. Mas tem razão numa coisa: nos anos 1960, por exemplo, não se sabia muito sobre as estrelas a não ser quando iam ao programa do Johnny Carson. Ver as estrelas na passadeira, nos discursos de agradecimento... era um acontecimento. Raramente víamos as estrelas fora das personagens. Agora, claro, não conseguimos fugir-lhes. E metade delas têm "reality-shows"... Agora, não só a proliferação de informação, mas também a proliferação de cerimónias de prémios, tornou-nos um pouco cínicos. Apesar disso, os Óscares continuam a ser a mãe de todas as cerimónias - se só se pudesse receber um prémio, era este que se quereria.

Podemos encontrar prémios e nomeações sintomáticos de um momento. Mas também pode parecer tudo aleatório, fruto dos votos distintos de 6000 pessoas.

São votantes e por isso influenciados por muita coisa. E multiplique-se isso por dez por serem artistas, ainda mais propensos a coisas [risos]. É difícil fazer um cálculo. Olhando para os últimos 20 anos, não acho que se possam tirar conclusões sobre a qualidade artística real. O que esse olhar nos dá é uma silhueta, delineada de maneira ampla e difusa, do que a cultura está a fazer. Penso que é o mais próximo que conseguimos chegar.

Nos anos 1960 temos um ano [1965] uma freira que canta a ganhar, com "Música no Coração", e passados poucos anos [1969] "Midnight Cowboy", sobre um prostituto urbano, vence. Sabemos que nessa altura a cultura estava a mudar. Mas nem sempre é tão óbvio. Há tantas coisas que informam essas listas - as mudanças culturais afectam o tipo de filmes que são feitos, que respondem ao contemporâneo, e daí há nomeações; e em segundo lugar nunca sabemos o que passa pela cabeça dos votantes. Existe a sensação de que as pessoas que votam não viram todos os nomeados e que votam no que acham que devia ganhar e não na melhor actuação ou no melhor filme. "Gandhi" ganhou no ano de "ET" [1982]. Era um bom filme, mas era sobre Gandhi. Acho que o ser humano Gandhi é que ganhou o Óscar. [risos] E há os Óscares entregues aos nomeados que já o foram muitos anos. Tudo isto se funde nessa tal forma amorfa da cultura num dado momento.

E como é que se lida, mesmo olhando para essa forma difusa, com o facto de no ano de "Pulp Fiction" se ver "Forrest Gump" a ganhar?

Só podemos olhar para isso assim: nesse ano, a comunidade de Hollywood decidiu apostar num filme "feel-good". Era 1995 [logo a seguir à "Lista de Schindler"] e tinham um filme "avant-garde", inovador e comercialmente viável contra um filme à Jimmy Stewart. Escolheram o último e penso que as bilheteiras são mais conclusivas do que os Óscares ["Gump" foi o mais visto do ano e "Pulp Fiction" o décimo mais visto]. Nos Óscares teve mais votos. Se em 2004 "Fahrenheit 9/11" tivesse sido nomeado para melhor filme e tivesse ganho [ano de eleições presidenciais nos EUA], aí podíamos dizer que havia uma mensagem agressiva. Quanto à "Lista de Schindler", era um bom filme e tinha um tema tão sagrado que produz o efeito Gandhi. No ano seguinte, olhando para "Forrest Gump", será que era o sorvete de que precisávamos para limpar o palato? [risos]

Há 20 anos ainda não conhecíamos alguns dos nomeados e o "hype" era maior. Hoje, sendo tudo tão acessível, estaremos a caminhar para a irrelevância dos Óscares?

Não, acho que é possível que isso torne os Óscares ainda mais relevantes. A cultura popular está tão fragmentada... Os Óscares já não são o grande acontecimento de antes, mas à medida que a cultura se fragmenta, quando há tantas opções, filmes, televisão, cabo, produtos para a Net, os Óscares podem servir como um "Top Ten". Os Óscares organizam o caos dando pistas. E acho que o que mais mudou nos últimos anos na forma como interagimos com os filmes foi o vídeo. Agora, os Óscares tornaram-se num gigantesco anúncio de aluguer de DVD. É ver o que mais se aluga ou se procura na Internet na manhã seguinte aos Óscares.

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