Está lá tudo

Chamo a vossa atenção para uma reportagem de cinco minutos que passou em 2008 no programa Biosfera da RTP2. Pus uma reprodução dela no meu blogue (http://ruitavares.net) e há várias outras a correr pela Internet. O tema dessa reportagem é o efeito das intempéries nas ribeiras da ilha da Madeira, nomeadamente em caso de chuvadas concentradas e muito abundantes.

A razão por que gostaria que vissem esse vídeo é muito simples: está lá tudo.

Nas palavras claríssimas de uma porta-voz da organização ambientalista Quercus e de um professor de Geologia da Universidade da Madeira, está explicado que as chuvadas como as que ocorreram há uma semana na Madeira são pouco frequentes, sim, mas descritas e conhecidas e esperadas. A formação das enxurradas de lama que todos vimos em imagem real aparece pedagogicamente narrada através de uma animação. E indicam-se alguns princípios de planeamento defensivo: à volta das ribeiras, sugere o professor de Geologia, devem construir-se jardins e parques, "que também são precisos e são fáceis de evacuar"; manda o simples bom senso que se deva evitar a construção de infra-estruturas, algumas das quais importantes (hospitais, quartéis de bombeiros) nas proximidades das ribeiras.

Isto foi há dois anos, mas há exemplos mais antigos: entre eles, um "profético" texto do silvicultor Cecílio Gomes da Silva, publicado em 1985 e citado no editorial do PÚBLICO do passado dia 25.

A ideia não é fazer de uma simples reportagem um manual de preparação para catástrofes a aplicar integralmente. Mas ela serve para contrariar os arautos da "inevitabilidade" e da "imprevisibilidade" destes acontecimentos. Sim, o que aconteceu é raro, mas não é "imprevísivel". Não, não era "inevitável" construir-se como se construiu. Sim, caros portugueses: há um preço a pagar pelo nosso desrespeito sistemático e simultâneo ao meio físico e ao bem público.

Acima de tudo, ela serve de emblema. O país tem cidadãos suficientes para que as coisas sejam bem feitas. Só que ninguém os quer ouvir.

Desde o 25 de Abril espalharam-se universidades por todas as regiões do país, incluindo as autónomas. O número de licenciados aumentou várias vezes. A sociedade civil reforçou-se, fundaram-se associações e ONG, há gente verdadeiramente empenhada em defender o património ambiental, cultural ou construído.

No entanto, se ouvirmos Alberto João Jardim falar da reconstrução, o que temos? "Eu vou fazer da mesma maneira; eu vou reconstruir; eu vou mandar." Um eu, eu, eu, permanente - e Jardim é apenas o pior exemplo do nosso politiquês, feito de homens (quase sempre homens) que se julgam o alfa e ómega da nação, que estão assentes em clientelas medíocres e que pretendem cooptar a sociedade de cima para baixo, em vez de a ouvirem, e mobilizarem, de baixo para cima.

Não é só que ninguém ouve a gente que aparece naquela reportagem. É que os poderosos se esforçam para que eles não sejam ouvidos (há pouco tempo uma delegação do Parlamento Europeu foi à Madeira e uma das propostas era que se visitassem vários pontos de crise ambiental; o PSD fez o possível para impedir essa parte do programa e, com uma ajudazinha do PS, lá o conseguiu).

Quando digo então que "está lá tudo", não falo apenas da calamidade natural na Madeira; falo também da forma como os nossos problemas de democracia aparecem ali em pano de fundo.

Enquanto a nossa democracia estiver virada ao contrário não seremos capazes de nos aperceber de uma coisa simples. É que Portugal já é muito melhor do que isto. Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu pelo Bloco de Esquerda (http://twitter.com/ruitavares )

Sugerir correcção