Cortar o défice de forma muito brusca pode ser imprudente
Uma coisa é certa: os mercados têm realmente essa ideia. E logo aí há um problema sério que é o de saber como é que podemos diminuir a dependência que temos. Estamos perante uma situação em que as agências de rating têm uma importância desproporcionada, em que há uma dependência dos mercados de financiamento externo. E em que há também uma dependência dos mercados de exportação, uma vez que temos afunilado enormemente os destinos das nossas vendas ao estrangeiro. Em suma, os problemas existem, tanto do ponto de vista dos mercados, como da própria capacidade de pagar a dívida.
Acha útil nesta fase estar a lutar contra os mercados, fazendo as críticas que o Governo, por exemplo, tem feito?Acho que sim. Não se pode deixar que a pressão seja feita, sem contrapor outras posições. O grande problema é que temos o Estado sujeito a um duplo ataque. Por um lado existe uma grande desconfiança em relação à sua própria existência. É o discurso do monstro, por exemplo: a ideia de que o Estado é sempre algo que constitui um problema e que convém afastar e minimizar. E, por outro lado, o Estado sujeito a outro ataque que é o da sua fragilização e captura pelos interesses privados. Não é exagero nenhum dizer que este Estado que é considerado um problema é, ao mesmo tempo, sucessivamente colonizado por interesses.
De que forma?O Estado tem sido levado a criar mercado para os privados e a ser capturado do ponto de vista das suas funções técnicas. O Estado em termos técnicos está cada vez mais desapossado. Hoje interrogo-me se o Estado tem capacidade para assinar contratos com os privados. Esta é aliás uma pergunta que tem sido feita por muitos com respostas bastante convincentes. Portanto, há um contexto ideológico, ao qual é preciso dar uma certa resposta política e ideológica. Submeter-nos à ideia de que os mercados reconhecem cristalinamente o que se passa, isso não pode ser feito. O Estado é, evidentemente, que está no centro do debate político e ideológico e isso deve vir ao de cima. O pior seria naturalizarmos a posição das agências de rating.
Mas além de se contrapor ideologicamente, o que se deve fazer mais?Tem de haver também contraposição económica, não basta a ideológica. Isso é verdade. E acho que há um plano que é essencial para isto: o europeu. Nesta fragilidade crescente das nações do euro, se não tivermos forma de caminhar e de abrir horizontes, ficamos com sérios problemas. É evidente que uma integração orçamental, de mercados de trabalho ou social não se faz de um dia para o outro. Ao pé disso, criar uma moeda única foi uma coisa simples. Contudo, abrir esse caminho como cenário alternativo é essencial. Provavelmente, não encontramos via de resposta aos problemas actuais que não seja esta.
Esta é uma questão que vai muito além do que Portugal possa sozinho fazer...Mas passa por combates que mesmo uma nação portuguesa pode fazer.
Acha que este plano de ajuda à Grécia, que ainda não se sabe muito bem o que é, é um passo nesse caminho?Seria um passo maior se se soubesse melhor o que era. Parece pouco e não chega, mas terá de ser por aí. Por exemplo, quando se fala da posição face às agências, se estivermos a considerar o conjunto da zona euro em vez da soma dos diversos países, ficamos com um cenário completamente diferente.
O problema é saber se, por exemplo, os alemães têm interesse nisso...O drama europeu é que tivemos sempre nos grandes avanços dependentes das concertações dos grandes países, designadamente o eixo franco-alemão. E isso hoje implica um activismo dos pequenos países mais importante. Têm é de fazer a demonstração, o que não é fácil, que não se trata apenas de um interesse individual, mas sim de uma coisa importante para todos. O que me parece claro é que o problema que resulta do veredicto dos mercados em relações aos países periféricos da UE vai certamente reforçar-se se não houver sinais europeus de que poderá haver uma mediação dos riscos face aos mercados. Estamos num plano que é quase tão difícil como o da construção europeia que já temos.
Se do lado das grandes potências não houver vontade, podemos correr o risco de uma desagregação da zona euro?Não me arrisco a fazer uma previsão, respondendo que sim ou que não. O que acho que se deve fazer é traçar vários cenários. E desse ponto de vista, o cenário de desagregação da zona euro é um cenário possível. É um cenário em que os problemas de uma economia como a nossa seriam muito maiores e que, por isso, é bom contrapor com outros cenários. É necessário que, à escala global, se encontrem substitutos ao que os países foram noutras fases da história económica. Tivemos fases que foram muito centradas nos Estados-nação e sabemos que hoje isso se mantém, mas com fragilidades que não havia anteriormente. Provavelmente a grande vantagem europeia é que nós podemos, a uma escala supranacional, repercutir uma imagem do género da que os Estados-nação representavam, com capacidade de intervir directamente em formas de regulação que tenham a ver com o crédito, financiamento, fluxos financeiros e questões orçamentais.
Esse tipo de solução europeia não poderá ainda assim implicar, para os diversos países, uma aplicação de regras orçamentais apertadas? Portugal não tem, em qualquer caso, de dar uma resposta nesta área?Isso também me parece. Não vale a pena ignorar que tem de haver uma solução dentro do próprio orçamento. Um défice como o que temos tem de ser pensado do ponto de vista da sua redução. De qualquer forma, em primeiro lugar, faz-me um pouco impressão que se possa ter tal optimismo como aquele que o Governo apresentou relativamente ao tempo de redução do défice. Não se pode lidar com números mágicos como os três por cento, quando se está na situação de crise em que se está. É evidente que é necessário dizer que numa crise como esta não tem de ser uma tragédia tão grande que estejamos com níveis de défices mais altos do que o desejado.
Acha imprudente uma redução demasiado brusca do défice?Claro, até porque não sabemos muito bem qual é a actual situação económica. Estamos numa crise que passará em breve ou estamos a entrar num período longo e turbulento? Endeusar o défice como se não estivéssemos numa situação como a actual não é grande caminho. Mas compreendo que tenha de haver sinais, mesmo para os tais mercados que são tão cruéis connosco. Agora o grande problema é que, quando se fala da despesa, já sabemos do que é que se fala. Fala-se de salários na função pública e de prestações sociais. A mim o que me parece é que seria muito útil um escrutínio rigoroso de toda a despesa do Estado.
Isso não está já feito?Não está escrutinado o peso na despesa daquilo que tem a ver com contratos públicos, com despesas que resultam do papel de criação de mercados pelo Estado.
Por exemplo?Tivemos, há tempos, o primeiro-ministro a explicar como era difícil e oneroso para o Estado gerir um contrato de uma parceria público-privada no domínio da saúde.
Mas consegue acreditar numa consolidação orçamental sem reduzir o número dos funcionários e o peso dos salários?Não sei se é possível e não rejeito que esse macanismo tenha de ser mobilizado. O Governo fê-lo agora neste orçamento. Não creio que a nossa Administração Pública seja tão exageradamente pesada em comparação com outras. Mas compreendo que se trabalhe a esse nível. Quem dirige instituições públicas certamente que tem de ter esse tipo de preocupações. Eu próprio já as estive. Agora, não podemos é apenas concentrar tudo aí. Temos vindo a ver o Estado a pagar, de forma muito onerosa, por funções que deveriam ser suas. Tive conhecimento de um pequeno serviço público que tinha contratado a uma consultora a aplicação do SIADAP (o sistema de avaliação dos funcionários públicos). Acho que isso diz muito sobre esta mentalidade de privatização do Estado. É preciso renegociar contratos públicos, reavaliar formas de privatização que foram sendo alargadas e que são mais onerosas.
E do lado da receita?Se temos um problema de défice, no limite, temos de ponderar formas de aumentos dos impostos. É inevitavel é que seja com contornos de equidade.
Em que impostos, concretamente?Ao nível da tributação das mais-valias bolsistas, da tributação das operações financeiras, para além da tributação dos maiores rendimentos. Aceito em absoluto que tenha de ser feito.
A solução tem estado na subida do IVA, por causa da competitividade. Não é um factor importante?Aceito que sim, ou seja, vemos agentes económicos que trazem esses problemas em cima da mesa e, por isso, há limites que têm de ser aceites. Mas acho que se tem de aumentar a carga fiscal, tem de se passar muito mais pelos impostos em que, ao mesmo tempo, se pode discutir a questão da equidade e, sobretudo, da justiça fiscal.
O plano anticrise do Governo serviu para alguma coisa?O plano foi útil e não poderíamos passar sem este tipo de apoio. O apoio à banca fez sentido, foi necessário e quero acreditar que teve utilidade. O investimento público é importante. Portugal é um dos países da UE que mais dependência têm do investimento público. As fases de maior crescimento económico são as que coincidem com uma aceleração do investimento público. Isto acontece quer pela sua importância quantitativa quer pela fragilidade do investimento privado.
Portanto, para si, o investimento público não é só por causa da crise...Pelas duas razões. Por motivos estruturais e porque, quando estamos numa situação como esta, essa fome de investimento público é ainda maior.
Não seria possível apostar no investimento público excluindo os grandes projectos?Eu não os excluo por causa das convicções fortes que tenho sobre a necessidade de infra-estruturar o país. Parece-me claro que alguns desses grandes projectos são necessários, com um papel de estímulo da economia a que não se consegue chegar por outro lado. Mas evidentemente que o outro tipo de investimento parece-me também indespensável. Acho que precisávamos de uma paleta grande de investimentos.
Mesmo correndo um risco orçamental...Há riscos orçamentais a correr. E é aí que temos de pensar se devemos endeusar um número acerca do défice ou se devemos adoptar formas de gestão intertemporais, mais lentas e mais assumidas, e que têm de benficiar da assunção de que os Estados-nação não têm uma esperança de vida de 80 anos, como os homens.