Sabor, o último retrato de um rio selvagem

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Imagem retirada do documentário dr

Documentário marca a despedida do rio tal como o conhecemos, "último bastião de natureza íntegra" da Península Ibérica. Em Março, o Sabor começa a ser desviado

A ideia foi fazer um retrato de despedida. "O que eu vi e senti já não vai existir quando os meus filhos nascerem. Em vez de um álbum de retratos, ficam com um DVD, com muitas imagens e histórias", conta Ivo Costa. E o que sentiu Ivo, já que o viu, poderemos ver todos? "Que todas as imagens nunca serão suficientes. É uma força poderosa. Estar nas margens do Sabor é imponente", diz o autor do documentário Sabor da Despedida (RTP2, 21h08). É já em Março que o "riozinho" que nasce ainda em Espanha, dois quilómetros a montante da fronteira portuguesa, vai começar a ser desviado para prosseguir a construção das paredes de betão que vão compor o aproveitamento hidroeléctrico da barragem do Baixo Sabor, um investimento da EDP que ronda os 500 milhões de euros - a mãe de todas as barragens, ou melhor, a "mãe do plano nacional de barragens", para usar as palavras exactas proferidas há dois anos pelo então ministro da Economia, Manuel Pinho. E o documentário, com produção da Farol de Ideias, pretende "captar a derradeira fotografia" do último "bastião de natureza íntegra" que ainda existe na Península Ibérica.

Sabor da Despedida é o segundo trabalho no ainda curto currículo de Ivo Costa, 25 anos - o primeiro foi o documentário GeoPortugal, que também passou na RTP2. Quando aceitou o desafio da produtora para avançar para o terreno - visitou-o pela primeira vez em Maio do ano passado e a ele voltou muitas outras vezes até terminar as filmagens, em Dezembro - foi com vontade de "ouvir todos, bem como os argumentos de todas as partes". Mas, continua, "ao querer demonstrar aquilo que vai desaparecer, reconheço que a mensagem que ficou com maior peso foi a daqueles que contestam o projecto". Apesar de não serem as mais abundantes. "O que mais me impressionou foi a indiferença da maioria das pessoas que lá vivem", lembra Ivo Costa.

Lívia Madureira, professora em Economia do Ambiente da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, dá uma explicação técnica: "Também nisso a construção do Baixo Sabor é um caso paradigmático, de baixas expectativas. Ficou provado que, apesar de muita luta, não houve capacidade para influenciar as decisões."

Bárbara Fráguas, membro da Plataforma Sabor Livre - a organização que mais contestou a barragem e que levou, inclusive, uma queixa a Bruxelas, que acabaria arquivada na Comissão Europeia -, também aparece no documentário. Mas nem precisou de falar nisso. No guião de Ivo Costa, Bárbara aparece apenas a enumerar algumas das espécies de peixes ameaçadas com a construção da barragem; e a explicar, em termos científicos, quem é a "ave peixeira" referida pelo casal Guiomar e Isidoro, moradores na aldeia de Santo Antão da Barca, uma das que vão ficar submersas pelo espelho de água. Trata-se da cegonha negra, que tem estatuto vulnerável mas não tão ameaçado como o da águia real, igualmente documentada pela câmara. "Não recorremos a imagens de arquivo. Procurámos o lobo ibérico, que também por lá anda, mas não tivemos a sorte de o encontrar. Quando não tínhamos vivos, recorremos a imagens gráficas", explica Ivo Costa.

Se as conversas com os técnicos foi combinada, já os registos captados com moradores nas aldeias que vão ficar afectadas pela construção da barragem foram ditados pelo guião da casualidade. O recurso ao 3D ajuda a visualizar o impacto da albufeira que vai começar a ser criada e que serviria para deixar completamente submersos os 110 metros de altura do monumento ao Cristo-Rei, em Almada. O "riozinho" vai transformar-se numa albufeira com a cota de 234 metros. Quem assim se refere ao Sabor é Bordalo e Sá, hidrobiólogo do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, para relembrar que em Agosto corre com 100 litros de água por segundo e que se alguém lhe despejasse 20 garrafões de água lhe duplicaria o caudal.

O documentário traz-nos as explicações técnicas, traz-nos o contraditório, e traz-nos a vox populi. Dos que estão ansiosos por ver o rio crescer, como José Carrasco, habitante de Brunhoso, que não percebe as críticas dos ambientalistas - o rio não vai encher do dia para a noite mas em ano e meio, "o que dá tempo às árvores e aos animais para se ambientarem". E também a voz dos devotos que sofrem com o fim da Capela de Santo Antão da Barca, que vai ficar submersa - a EDP prometeu construir uma réplica. Madalena Cordeiro, de lágrimas nos olhos, garante que se soubesse quem são os "dois ou três responsáveis que decidiram isto" os atiraria para a água da barragem, para os afogar. Encolhe os ombros e só afoga as mágoas ao dizer que "os que querem a barragem não é porque precisem dela, é pelo dinheiro que vão receber". Será 1,75 euros por metro quadrado cultivado. "Se a tivessem construído há 60 anos, como diziam, seria uma desgraça, que isto aqui era tudo rico", conta Manuel Bento, que andou com o pai, na altura, a marcar as propriedade em Silhades. "Agora não há nada e a barragem é uma coisa boa." Bento diz que quer chegar a ver a albufeira cheia. E acompanhou Ivo na despedida à aldeia agora fantasma.

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