O teatro de Béla Pintér arde (mas o que arde cura)

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"Ópera Camponesa" e "A Louca, o Médico, os Discípulos e o Diabo" são a Hungria de barriga aberta, a exorcizar os demónios do seu próprio folclore e a acreditar no poder de enfrentar os problemas. Vamos ver-nos ao espelho, e sair de lá mais fortes

Béla Pintér (n. Budapeste, 1970) acaba o e-mail que manda ao Ípsilon a dizer que acredita "no poder curativo de enfrentar os problemas" e então sabemos finalmente ao que vamos: ao espelho, rapidamente e em força, e para sairmos de lá mais fortes, porque o teatro dele arde (demasiadas feridas abertas, e dedos sem medo de tocar onde mais dói) mas cura. ""pera Camponesa" (hoje e amanhã na Culturgest) e "A Louca, o Médico, os Discípulos e o Diabo" (quarta, quinta e sexta da próxima semana no Teatro Maria Matos), os dois espectáculos que os húngaros da Béla Pintér e Companhia trazem a Lisboa, são a Hungria de barriga aberta, a exorcizar os demónios do seu próprio folclore, cantando e rindo na mesa de operações deste singular teatro anatómico, mas nada disto é demasiado húngaro para ser verdade em Portugal, ou em qualquer outro país da Europa. A Hungria de Béla Pintér é uma tragicomédia, mas nisso estamos todos no mesmo barco - e desde que somos gente.

"Em última instância, ["pera Camponesa] é a história de uns pais que não reconhecerão o filho e o matarão. É uma ficção muito próxima da tragédia grega e da história de Édipo, mas em todos os países da Europa onde apresentámos este espectáculo os espectadores tiveram a impressão de estar colocados diante do seu próprio folclore, como se esta história, apesar de muito húngara, fosse fundamentalmente a deles", explicou Béla Pintér à revista "Voir" quando levou ""pera Camponesa" a Montréal, no Canadá. Agora que a traz a Lisboa, explica ao Ípsilon que a peça não é "um retrato directo da Hungria rural" mas que há vida real, e portanto Hungria real, nesta história de uma festa de casamento que vai de desastre em desastre até à auto-destruição final (alcoolismo, adultério, incesto, infanticídio, tudo). A vida na Hungria não é fácil, diz a dada altura um dos convidados do casamento, mas entre mortos e feridos (os mortos e os feridos do fascismo húngaro, da ocupação nazi, dos campos de concentração, dos tanques soviéticos, do comunismo goulash e do capitalismo selvagem, para pormos o dedo apenas nas feridas mais evidentes dos últimos cem anos) a Hungria lá arranjou maneira de sobreviver. É uma coisa que os faz chorar, e às vezes rir: "O humor dessa cena tem a ver com o facto de cantarmos essas frases ao ritmo do hino nacional. E de as cantarmos a chorar, gozando à brava com um dos estereótipos acerca dos húngaros, que tem a ver com o facto de termos sempre muita pena de nós próprios", diz Pintér.

Há pena da Hungria em ""pera Camponesa" (pena dos húngaros que tiveram de emigrar para a América mas deixaram o coração na Transilvânia, pena dos húngaros que ficaram do outro lado da fronteira quando alguém pegou num lápis e dividiu a Europa ao meio, pena das raparigas que engravidaram do rapaz errado, e dos rapazes errados que viram as suas raparigas a fumar cigarros e a fazer outras modernices com "cowboys" sobredotados, porque aqui, no fundo da Hungria, como no fundo da nossa herança grega comum, vale tudo até tirar olhos), mas também há orgulho no poderoso folclore que o país conseguiu construir e manter de pé quando tudo o resto se afundava: Béla Pintér está, de resto, tão à vontade com a desconstrução pós-moderna como com as formas mais tradicionais da arte popular, a começar pelo folclore, e os espectáculos da companhia que fundou em 1998 em Budapeste falam essas duas línguas, e falam-nas ao mesmo tempo. ""pera Camponesa", por exemplo, deve tanto à alta cultura (a peça alterna árias e recitativos, como numa ópera barroca) como à baixa cultura (todo o material cantado foi sacado a canções populares húngaras, mas a porta não está fechada: o nosso "cowboy" sobredotado que foi para a Suécia salgar arenques e acabou na América depois de ter ido fazer estragos para o Vietname, a Índia e a Papuásia-Nova Guiné tem garganta que chegue para se apoderar do melhor património da "americana" e fazer de "Country roads" um espiritual transilvano).

O teatro contra o tédio

É uma mistura que está no sangue de Béla Pintér, rapaz que cresceu a sonhar ao mesmo tempo com o folclore húngaro e com a vanguarda teatral europeia (hoje, trata-as por tu, e não saberia viver sem uma nem sem a outra, destreza que também exige aos seus actores: o folcore continua vivo, de resto, em Budapeste, o que faz da capital húngara um lugar estranho na paisagem europeia): "O contraste entre o velho e o novo, entre a tradição e o modernismo, entre o real e o surreal, entre o folclore e o kitsch, encontra-se em todo o meu trabalho, particularmente na linguagem, que é uma mistura de 'slang' contemporâneo e de poesia popular". O humor negro é outra coisa que lhe está no sangue, como está no sangue da Hungria: a história que está na base de ""pera Camponesa" é o tipo de coisa que os avós húngaros contam aos netos antes de dormir, sublinha Pintér, que ouvia coisas destas sempre que ia visitar os avós ao campo. "Desde a minha infância que este fim sinistro, e absolutamente trágico, me interessa. Usei o motivo dos pais gananciosos, que matam o filho por dinheiro, como final da peça, e inventei tudo o que se passa antes", explica. Como sempre, teve "uma visão muito concreta do espectáculo" mesmo antes de o começar a fazer: "Vejo o cenário, vejo os figurinos, vejo o início, vejo o fim, vejo o esqueleto da história, e então defino o tipo de material musical com que quero trabalhar. Escrevo tudo, raramente improvisamos".

A música é crucial na maneira como Béla Pintér levanta um espectáculo: "Tenho sempre o texto primeiro, a música vem depois. Mas é indispensável. O pior inimigo do teatro é o tédio, e a música é uma arma muito eficaz contra o tédio. Sobretudo a música ao vivo: é um fenómeno muito orgânico, e transfigura o ritual do teatro". Tal como as personagens da ""pera Camponesa", que de resto Pintér assinou a meias com o compositor Benedek Darvas, os protagonistas de "A Louca..." raramente falam: iconograficamente, a peça é toda o "Censo de Belém" de Brueghel, o Jovem, mas musicalmente é Mozart, Bach e Pergolesi numa tarde no manicómio. Pintér a figurar a Hungria, como sempre, mesmo que para isso tenha ido buscar coisas de outros tempos, e de outros lugares: "Ao olhar para essa pintura do Brueghel, em que vemos a Sagrada Família à procura de abrigo nos campos nevados da Holanda, tive a ideia de adaptar a história de Jesus à Hungria contemporânea. Jesus provocou os judeus ao dizer que era o filho de Deus e eu queria qualquer coisa que fosse igualmente chocante", conta ao Ípsilon. Foi ter a esta história em que uma miúda que sai de uma barriga de aluguer numa noite de Natal acaba enforcada num manicómio depois de fundar uma seita. Não é, necessariamente, um ataque à religião católica: "Não vou à missa mas tive uma educação católica e de certa forma isso ainda faz parte da minha vida. Tenho inveja dos verdadeiros crentes e odeio hipócritas. Os extremos tocam-se, e de vez em quando causam escândalo". O escândalo dele é este: não haver redenção, nunca, para ninguém. É aqui que ele nos diz que não acredita na redenção: acredita que o passado regressa sempre para cobrar os pecados que ficaram por pagar, e acredita em pessoas com tomates à frente do espelho. Essas curam-se, as outras vão à vida.

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