Alexandre Estrela em queda livre

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Em "Motion seekness", na Culturgest-Porto, Alexandre Estrela prossegue o seu trabalho em torno da percepção do espectador. O ponto de partida é a memória de um filme realizado involuntaria-mente por um operador de câmara em queda. O protagonista não conseguiu abrir o pára-quedas após ter saltado de um avião para registar uma formação de desportistas no céu...

A memória de um programa televisivo deu origem a duas exposições de Alexandre Estrela (Lisboa, 1971), ambas programadas pela Culturgest: "Putting fear in its place", realizada em 2008, nas salas do Chiado 8, na baixa lisboeta, e "Motion seekness" - um jogo de palavras a partir de "sickness" (doença) e "to seek" (procurar), que resulta na ambiguidade entre, por um lado, o enjoo causado pelo movimento e, por outro, a procura de uma acção -, inaugurada na passada sexta-feira, no Porto, com curadoria de Miguel Wandschneider.

Em meados dos anos 1990, o confronto com dois pequenos filmes emitidos no âmbito de "Les enfants de la télé" - programa de entretenimento estreado em 1994 no canal televisivo France 2, transmitido pela TF1 desde 1996, no âmbito do qual os convidados revelam imagens que, por alguma razão, os marcaram - impressionou Alexandre Estrela. Nele, recorda o artista, "um cómico, uma espécie de Andy Kaufman francês, mostrou excertos de uma operação ao cérebro, captada em tempo real e durante a qual o paciente, estimulado com cotonetes e eléctrodos, ia respondendo a questões acerca das sensações: 'estou a sentir um sabor estranho', 'lembro-me de uma imagem'..." Este episódio está na base de "Putting fear in its place", exposição onde se abordava uma questão comportamental ligada às neurociências: o medo.

O segundo filme mostrado nesse programa documentava uma série de pára-quedistas a fazer formações em queda livre, na qual os protagonistas "se agarram entre si e constroem uma espécie de ADN em suspensão, que se magnetiza num centro: é uma coisa incrível", nota Alexandre Estrela. O interesse deste episódio deve-se, contudo, à tragédia que iria acontecer com o operador de câmara, o qual, devido à sua posição exterior, é essencial para captar a figura desenhada no céu pelos desportistas. "A partir das imagens apercebemo-nos, de repente, que o 'cameraman' se esqueceu do pára-quedas: deixas então de ter uma perspectiva da paisagem e passas a confrontar-te com uma espécie de entropia relacionada com a queda do próprio sujeito; visto ser impossível filmar-se a ele próprio, porque a câmara está no capacete, vêem-se apenas movimentos de câmara que criam uma espécie de ponto cego", recorda o artista. E acrescenta: "Para mim é chocante este desastre ter sido apresentado naquele contexto; aquilo marcou-me."

A gota

A confluência de meios - a máquina de fotografar e a câmara de filmar - num objecto - um capacete - de um sujeito em queda interessou igualmente Estrela: essa situação sublinhou o vácuo causado por uma série de movimentos sincronizados com a experiência dramática do operador de câmara. Na actual exposição da Culturgest, existe, portanto, "um ponto gravítico e depois há pequenas coisas que se vão formando e criando sentidos, uns 'a priori' outros 'a posteriori'", assinala o artista, lembrando também que, ao contrário do senso comum, segundo o qual caímos de cabeça para baixo, "pode dar-se o caso do corpo se virar em forma de gota" - corpo deitado de costas, pernas e braços levantados em direcção ao céu. Tornando-se, desse modo, numa espécie de fluxo simultaneamente aerodinâmico e asfixiante, devido à falta de ar no interior desse espaço formado pelas pernas e braços virados para cima: "Quando acontece um destes casos, o que eles [os pára-quedistas] têm de fazer é voltar a pessoa ao contrário e puxar um outro pára-quedas".

O confronto casual com uma revista de pára-quedismo, em 2003, fez com que Estrela se recordasse, uma vez mais, não só daquela perturbadora emissão de "Les enfants de la télé", mas também activou a sua vontade de realizar uma série de trabalhos a partir desse peograma, um desejo latente há vários anos.

"Comecei por pensar em lançar uma câmara de um avião, mas tinha sempre a sensação que o vídeo iria ficar sempre aquém da fiel representação de uma queda: não me interessava fazer essa experiência de forma ilustrativa ou pedagógica."

Decidiu então realizar uma série de obras com recurso a uma fotocopiadora e a operações de acaso, das quais resultaram os oito desenhos da série "Motion seekness", agora revelada na Culturgest. O processo de realização dos papéis originais é relativamente simples: os recortes de três capacetes de um operador de câmara pára-quedista foram sucessivamente fotocopiados. Depois, através de uma pincelada caligráfica, estes objectos, esvaziados de sujeito, foram unidos a um rasto, criando-se assim a sugestão de um movimento, de uma vertiginosa descida. Através destes procedimentos houve, no fundo, a intenção de "imprimir gravidade e velocidade, em cruzamento."

Na Culturgest-Porto, esta série de desenhos, agora transpostos para uma escala maior, surgem numa arquitectura panóptica, um dispositivo prisional concebido em 1789 por Jeremy Bentham em que os detidos eram vigiados por um único guarda situado no centro da estrutura.

A perturbação criada por Estrela - que, nesta exposição está constantemente a trabalhar a dicotomia artesanal/tecnológico, sublinhando ainda, a partir desta oposição, a forma como se produz quase instantaneamente a obsolescência das máquinas - diz respeito à introdução de uma verticalidade, uma queda, nesse edifício pensado na sua estabilidade horizontal, aquela que permite o máximo de observação, de disciplina. O artista apropria-se, assim, de "uma arquitectura monumental para apresentar fotocópias", potenciando a conflitualidade dos meios que atravessa uma mostra completada por um outro trabalho, mais agressivo, "Queda e contra queda" (2010) - projecção cintilante ("strobe") sobre um poster descontextualizado, sendo a emissão de luz acompanhada por dois sons resgatados de um concerto noise realizado o ano passado em Lisboa.

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