Vítimas portuguesas da ETA

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Manifestação contra a ETA em Lisboa, em Março de 2004 DANIEL ROCHA

Um livro, Vidas Rotas, recorda todos os que morreram, ao longo de décadas, por culpa da violência etarra. De apelidos sonantes da política a figuras da economia, de reputados militares a cidadãos anónimos. Entre as 857 vítimas mortais há três portugueses. Por Nuno Ribeiro, Madrid

A sua morte passou despercebida. Não apareceu na primeira página dos jornais, nem abriu noticiários televisivos. Viveram e foram assassinados com discrição. No drama dos 857 mortos provocados pela acção terrorista são, apenas, uma migalha. Mas, como todos os outros, sofreram a crueldade da barbárie da violência. Só agora aos seus nomes e apelidos foi retirado o pó do tempo. E do esquecimento. São as vítimas portuguesas da ETA.

Foram três os cidadãos nacionais ou de origem portuguesa que desde 1982 morreram em atentados cometidos pelos etarras. Todos no País Basco. Sempre na província de Guipuzcoa. Um homem de 33 anos, uma mulher de 27 e um jovem de 24 anos. Nada tinham em comum. A não ser falarem português. Vidas diferentes unidas pelo mesmo destino fatal - a morte, a tiros ou à bomba. Os seus assassinatos, brutais, são mais um exemplo da irracionalidade terrorista. Os seus nomes foram agora recuperados. No livro Vidas Rotas (vidas destruídas), Rogélio Alonso, Florencio Dominguez e Marcos Garcia Rey escrevem em mais de 1300 páginas uma crónica negra. A das vítimas do último terrorismo autóctone da Europa - o da ETA (a sigla é em basco e significa Pátria Basca e Liberdade). O mesmo que visitou Portugal e se instalou no Casal da Avarela, em Óbidos.

Foi na noite de 5 de Outubro de 1982 que apareceu o corpo baleado de Juan Carlos Ribeiro de Aguiar Nalda. Quando em Lisboa já tinham terminado as comemorações de mais um aniversário da República e Espanha estava na antecâmara da primeira vitória de Felipe González. De 33 anos e de origem portuguesa, Juan Carlos vivia no bairro de San Pelayo, na localidade de Bakio. O cadáver foi encontrado perfurado por cinco balas à beira da estrada municipal que então ligava a terra onde residia a Bermeo. A vítima foi vista pela última vez com vida acompanhando uma jovem a uma paragem de autocarro, depois de terem estado nalguns bares de Bakio. Dele nada mais se sabia. Não constava dos ficheiros policiais. Ficou como uma das vítimas anónimas. As que mais depressa leva o vento do esquecimento.

O assassinato nunca foi reivindicado pelos terroristas. Contudo, pela munição encontrada no corpo de Juan Carlos - 9mm Parabellum, habitualmente utilizada pelos etarras -, a investigação policial atribui-o à organização. Ficaram por saber os motivos - se alguns existem para matar alguém.

"Na investigação que fizemos durante seis anos, este não é um caso único, há outros", diz ao P2 Florencio Dominguez, jornalista, escritor, perito na organização terrorista basca e um dos autores de Vidas Rotas. O ano da morte de Juan Carlos foi um dos de maior actividade da ETA: 116 atentados com 40 mortos. Para a organização era indiferente a tentativa de golpe de Estado de 23 de Fevereiro de 1981 que pôs Espanha à beira do colapso democrático. Também desdenhava o significado das sondagens que garantiam a vitória ao Partido Socialista Operário Espanhol nas eleições de 28 de Outubro de 1982. O anúncio de que o jovem socialista Felipe González sucedia a Adolfo Suárez não alterou o rumo da violência. A três semanas do triunfo do sloganPor El Cambio, Juan Carlos foi mais uma vítima da violência. Ainda hoje não se sabe porquê, nem interessa.

Sítio errado à hora errada

Conhecer o motivo não consola os familiares de Maria José Teixeira Gonçalves, que sabem por que ela morreu. A portuguesa de 27 anos estava no sítio errado à hora errada. Pelas 10h30 de 25 de Outubro de 1986 esta jovem dona de casa estava junto a um semáforo no cruzamento da Avenida do Boulevard com a Kale Legazpi de San Sebastián. Ia às compras? Procurava os correios? Estava a passear? Nunca se soube.

À mesma hora, 10h30, um veículo oficial transportava, como todos os dias, o governador militar de Guipuzcóa, Rafael Garrido Gil, general de brigada do Exército de Terra. Culto, melómano, disseram os amigos. Naquele semáforo o carro parou. Então, dois motociclistas, com o rosto escondido sob capacetes integrais, aproximaram-se. Um deles colocou no carro do militar um saco de plástico. O invólucro, colado ao veículo do general por um adesivo, continha uma panela com dois quilos de explosivo plástico e abundante metralha. Segundos depois, quando o duo da moto já se afastara a toda a velocidade, o carro explodia.

Os quatro ocupantes morreram de imediato. A onda expansiva da deflagração provocou 13 feridos. Maria José foi um dos sinistrados. Sofreu uma longa agonia. Acabou por morrer 17 dias depois, a 11 de Novembro. Foi uma vítima colateral, ainda antes de o termo ter sido popularizado e constar dos relatórios dos estados-maiores militares. A cidadã portuguesa entrou no rol das 12 pacíficas donas de casa assassinadas até hoje pela ETA.

"Aquele ano [1986] decorreu num contexto de pré-negociação", recorda Florencio. Os socialistas de González estavam no poder há quatro anos e, como os governos que lhe sucederam - de José Maria Aznar e Rodriguez Zapatero - comunicaram com os terroristas com o objectivo de pôr fim à violência. "Embora as negociações formalmente só tenham decorrido em 1989, em Argel, no ano de 86 já havia contactos", precisa o jornalista. Para a ETA, em 1896 como agora, negociar não equivale a diminuir a pressão da violência. "Colocar mortos na mesa" é uma expressão de sucessivos dirigentes etarras que, assim, consideram ganhar peso nas negociações. Maria José não estava ao corrente dessa estratégia. Como não estavam as outras 41 vítimas desse ano.

Foi o comando Goyeri o responsável pelo atentado da manhã de 25 de Outubro de 1986 em San Sebastián. Um dos seus membros, José Miguel Latasa Guetaria, acabou por ser detido em Julho de 1988. Foi condenado a centenas de anos de prisão por este e outros actos terroristas. A ETA expulsou-o das suas fileiras em 1994 sob a acusação de colaboracionista. Quatro anos depois, em 1998, ficou em regime de liberdade condicional.

Nas ruas de San Sebastián também foi assassinado outro português. Virgílio do Nascimento Afonso, 24 anos, foi morto a 23 de Maio de 1990 com vários tiros de pistola de 22mm no Bairro de Buenavista. De início a polícia não considerou que se tratasse de uma acção terrorista. Os investigadores admitiam a possibilidade de um ajuste de contas. Histórias de bas fond que chegaram a levar ao interrogatório de um agente da Guardia Civil.

Pretensos justiceiros

Mais de um mês depois, a 26 de Junho, a ETA reivindicou esta e outras mortes. Nunca foram encontrados os executores.

Os etarras retomavam uma das suas facetas: a de pretensos justiceiros. O português era acusado de ser traficante de droga. "Diziam que a droga era um expediente do Estado espanhol para debilitar os jovens revolucionários bascos", recorda Florencio Dominguez. Assim, até 1994, a ETA matou 32 pessoas, acusando-as de narcotráfico. Triste ironia que não pôde testemunhar Virgílio: "Txeroki", o penúltimo chefe militar da ETA detido, relembra Florencio, "foi preso na posse de 100 gramas de marijuana".

Com estas execuções, os etarras pretendiam justificar as suas acções sob a máscara de moralizadores da sociedade. Outorgavam-se o direito de fazer justiça na rua.

No entanto, em 1990, os seus atentados terroristas correspondiam a outros desígnios. "Nas vésperas de 1992, dos Jogos Olímpicos de Barcelona e da Exposição Universal de Sevilha, a ETA estava eufórica", explica o jornalista basco. "A sua análise partia do princípio de que o Governo espanhol estava débil, pois necessitava garantir a segurança para os acontecimentos de 1992", sublinha. Assim, ao Governo de Felipe González não restava outra solução senão negociar. "Negociar" tem sido o argumento a que os etarras recorrem para continuar a violência. A matar. Uma transmutação macabra da história do burro e da cenoura. Virgílio do Nascimento foi mais uma vítima numa longa lista daqueles tempos: 125 atentados e 25 mortos em 1990, 150 acções e 45 vítimas um ano depois. A série foi interrompida no momento decisivo. Em 1992. Quando a 29 de Março, na localidade de Bidart, no Sul de França, uma operação conjunta das polícias gaulesa e espanhola levou à detenção de toda a direcção etarra, o denominado "colectivo Artapalo". Frustrou-se a ofensiva contra os faustos espanhóis das olimpíadas de Barcelona e da Exposição de Sevilha. Em 1992, a ETA diminuiu a actividade e fez 26 vítimas.

Virar as costas às vítimas

Na lista de nomes de defuntos e de tristes histórias de Vidas Rotas não consta outro português, que se salvou da morte. Por sorte. Albino Pires era, em 1996, cozinheiro do quartel da Polícia Nacional de San Sebastián. Na manhã de 30 de Julho de 1996 dirigia-se à tarefa dos fogões. Entrou no carro, estacionado no Passeo de La Raxa. Uma bomba-lapa, que entra em funcionamento com o andamento do carro, deflagrou. O cidadão português ficou gravemente ferido na perna esquerda. Mas sobreviveu ao engenho de um quilo de amonal (explosivo feito com nitrato de amónio e alumínio, normalmente, com trotil) . Para estabelecer comparações: o material encontrado na passada semana na vivenda da Rua do Gesso, no Casal da Avarela, dava para fabricar 800 bombas deste tipo.

Em 1996, o Partido Popular de Aznar ganhou as eleições, interrompendo um novo processo de contactos do executivo socialista de González com a ETA. Uma via aberta em finais de 1995, que tinha como mediador Adolfo Pérez Esquivel, Prémio Nobel da Paz. Os etarras diminuíram o número de atentados, mas, em contrapartida, aumentaram as acções de violência urbana, a denominada "kale borroka" - onde foram "criados" Andoni Cengotitabengoa e Oier Gómez, os residentes no Casal da Avarela, que fugiram em 1 de Fevereiro após terem sido mandados parar por um controlo da Guarda Nacional Republicana.

"Durante muito tempo falávamos dos terroristas e dos seus antecedentes. As vítimas, à excepção de personalidades públicas, não tinham relevância", recorda Florencio Dominguez. Segundo um dos autores de Vidas Rotas a explicação é simples: "Nos anos 70 e 80, a vítima do atentado punha em evidência a incapacidade do Estado de defender o cidadão." A então jovem democracia espanhola, entre tentativas de golpes de Estado, debatia-se também com a memória da ditadura. Um aspecto muito visível na linguagem, aliás: "De início, era considerado como atenuante o factor político que os etarras alegavam para os seus atentados. Aceitava-se, assim, a tese do conflito político [entre Espanha e Euskadi] que tinha implícita a negociação."

Também a sociedade basca virava as costas às vítimas. Era tímida a repulsa após os atentados, ganhava a indiferença e vencia a ideia de que o assassinado teria feito algo. "As vítimas, sobretudo os polícias e agentes da Guardia Civil, eram enterrados às escondidas até que José Barrionuevo, como ministro do Interior, dignificou os funerais", relembra o jornalista.

Acordos fracassados

Todos os governos tentaram o diálogo com os etarras oferecendo em troca do fim das armas medidas de generosidade penal. Os três processos de paz - em 1989, com González em Argel, de Aznar, em 1998, e de 2006, com Zapatero - fracassaram porque a ETA quis negociar as suas exigências políticas.

Este círculo vicioso rompeu-se. Ruptura a que não são estranhas as vítimas. A Lei de Reconhecimento das Vítimas, de 1998, foi o primeiro passo. Depois, a individualização que a imprensa norte-americana fez das vítimas do 11 de Setembro de 2001 acabou por ser copiada pelos meios de comunicação espanhóis. "À ETA incomoda muito a visibilidade das suas vítimas, pois a sua desumanização era parte da estratégia de legitimação da violência terrorista", assegura Florencio.

Para os terroristas, as vítimas, como a portuguesa Maria José Teixeira Gonçalves, não tinham condição humana. Eram meros danos colaterais, contingências. Os etarras construíam, assim, uma imagem de lutadores que, hoje, foi destruída.

Não é por acaso que, nos seus comunicados, a organização terrorista começou a dedicar tempo, espaço e ameaças às associações de vítimas. Quem sofre a perda de alguém passou a temer pelo sofrimento que o seu desaparecimento podia suscitar. Uma ignomínia. No Zutabe, jornal interno clandestino, de Abril de 2004, dizia-se que as vítimas "desfiguravam o conflito político". Quatro anos mais tarde, em Novembro de 2008, o mesmo mote, no mesmo boletim: "Querem descontextualizar a luta política."

Vidas Rotas, livro inspirado numa publicação idêntica irlandesa, fruto de um trabalho de seis anos, é uma obra dura. Em 1300 páginas estão nomes, descrições de décadas de barbárie. Um exercício de memória para evitar o esquecimento.
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