A quem pertence o Vermeer que Hitler comprou?

Há muitas histórias parecidas com esta: Hermann Goëring viu uma pintura e desejou-a. Hitler, que mandava mais, comprou-a. Os herdeiros do homem forçado a vender o quadro querem-no de volta. O Estado austríaco já devolveu muitas obras roubadas durante a II Guerra. Mas pode ficar sem o seu quadro mais importante?

A Arte da Pintura é o quadro mais valioso das colecções públicas de Viena, e a única obra de Johannes Vermeer presente na Áustria. Está no Kunsthistorisches Museum, onde foi inaugurada uma exposição sobre a história, o restauro e o conteúdo desta pintura.

Esta mostra coincide com um inquérito patrocinado pelo Governo austríaco, destinado a determinar se a aquisição por parte de Hitler foi uma "venda sob coacção" e se o quadro deve ser devolvido aos herdeiros do vendedor. Os herdeiros dizem que Jaromir Czernin, que passou 15 anos em processos judiciais para o recuperar após a II Guerra Mundial, e que os perdeu a todos, não terá tido outra hipótese senão vendê-lo, pois a sua família estava sob ameaça.

"Estou seguro de que a Áustria devolverá esta pintura", diz Andreas Theiss, sócio sénior da Wolf Theiss, a firma de advogados que representa os interesses dos herdeiros. "É claro que se Czernin tivesse dito "Sr. Führer, sei que está interessado no meu quadro, mas está com azar", eles o teriam levado na mesma e a sua família teria sido enviada para um campo de concentração", disse Theiss em Viena.

Theiss declara que é impossível determinar o valor da pintura, apesar de uma estimativa por baixo o colocar em 210 milhões de euros. Actualmente, existem apenas 34 quadros que os especialistas unanimemente atribuem a Vermeer. Estão todos em museus, como o Louvre de Paris, a National Gallery de Londres, o Metropolitan de Nova Iorque, a Gemaeldegalerie de Dresden e o Rijksmuseum de Amesterdão.

AArte da Pintura, datado de entre 1665 e 1668, é considerado por muitos especialistas como sendo o mais importante de todos. Representa o artista no seu estúdio, vestido com uma vistosa jaqueta, estudando uma recatada modelo envolvida num vestido azul, com o olhar posto no chão. Ele está a começar a pintar uma coroa de folhas de louro azuis que ela tem colocada na cabeça. O grosso livro encadernado a pele numa mão, e uma trompeta na outra mão, revelam a sua identidade: é Clio, a musa da História.

Pintou-o para si

Ao contrário de muitas outras obras do pintor holandês, este não resultou de uma encomenda e ficou na posse de Johannes Vermeer até à sua morte em 1675. A viúva, encontrando-se em grande dificuldades financeiras, tentou conservá-lo, mas acabaria por ser obrigada a vendê-lo. Mais tarde, foi falsamente atribuído a Pieter de Hooch, um pintor contemporâneo de Vermeer, e foi comprado pela família Czernin em 1813.

Jaromir Czernin herdou A Arte da Pintura em 1929. Decidiu vendê-la, e em 1937 entrou em negociações com o secretário de Estado do Tesouro dos Estados Unidos da América, Andrew Mellon, tendo-se concordado num valor de um milhão de dólares em ouro. A Áustria concordou em emitir uma licença de exportação, diz Theiss.

Depois, com a anexação da Áustria pelo Reich germânico em 1938, uma venda para o estrangeiro já não seria permitida. Czernin, cuja família pertencia à aristocracia austríaca, entabulou negociações com o industrial alemão Philipp Reemtsma. Theiss garante que Reemtsma poderá ter agido a mando do marechal Hermann Goëring, que estava desesperado para arranjar um Vermeer para a sua colecção privada - na verdade, tão desesperado que uma vez trocou 150 quadros por uma falsificação de Han van Meegeren.

Assim que Hitler soube destas conversas, utilizou a sua Fuhrervorbehalt, a prerrogativa de adquirir antes de outros, pois queria a pintura para o seu Fuhrermuseum em Linz, a cidade onde passou a infância. Adquiriu-o por 1,65 milhões de marcos alemães (cerca de 660 mil dólares de então). Segundo declara Theiss, Reemtsma teria oferecido dois milhões de marcos alemães.

"Era importante que Hitler o conseguisse por menos", diz Theiss. "Ele queria mostrar a Goëring: "Tenho mais êxito do que tu, porque o consegui mais barato"."

Os herdeiros residentes em Viena, representados pela filha de Jaromir Czernin Sophie Huvos Czernin, dizem que o uso da prerrogativa levou a uma venda sob coacção. Argumentam que Jaromir não tinha outra alternativa senão vender o quadro a Hitler, porque estava casado com uma "judia birracial em segundo grau". Mais tarde, Czernin foi despojado de todos os seus bens e preso pela Gestapo durante três meses, de acordo com um relatório elaborado pela Wolf Theiss.

Mas, de qualquer maneira, o preço pago por Hitler foi, de longe, mais elevado que o de qualquer outra obra adquirida para o museu que ele planeava abrir em Linz, segundo mostra Birgit Schwarz, uma historiadora que publicou dois livros sobre Hitler e a sua colecção de arte.

As 4700 obras de Hitler

Muitas das mil obras reunidas pelo seu conselheiro para este projecto, Hans Posse, foram pilhadas de judeus na Áustria. Outras foram adquiridas através de vendas forçadas na Holanda, declarou Schwarz numa entrevista em Viena. Ficaram guardadas na Fuhrerbau de Hitler em Munique, a que o líder nazi fazia visitas regulares para as inspeccionar.

Mas se no final da II Guerra Mundial a colecção de Hitler já chegava às 4700 obras, o museu nunca chegou a ser construído. Em Maio de 1944, a colecção foi enviada para uma mina de sal em Altaussee, onde ficaria protegida. Tropas norte-americanas encontraram-na aí no final da guerra, juntamente com outras obras-primas, como a escultura da Madonna de Bruge de Miguel Ângelo e O Astrónomo de Vermeer.

A Arte da Pintura regressou a Viena para ser devolvida ao legítimo proprietário. Mas está pendurada no Kunsthistorisches Museum desde 1945. Apesar de Czernin ter entrado com processos judiciais para conseguir a sua devolução, a Áustria na década de 1950 recusou-se a entregá-la, argumentando que nem a coacção nem o preço de compra mais baixo podiam ser provados. Czernin morreu em 1966.

Cedê-la aos herdeiros de Czernin seria uma grande perda para a Áustria, que já devolveu obras de elevada qualidade e valor das suas colecções públicas a herdeiros de proprietários anteriores à II Guerra Mundial. Em 2006, o Governo foi forçado a entregar cinco quadros de Gustav Klimt, após um tribunal ter ordenado o retorno das pinturas a Maria Altmann, residente na Califórnia. A Áustria decidiu não comprar estas obras, pois seriam demasiado caras. Os quadros incluíam o retrato de 1907 conhecido como Adele Dourada, que Ronald Lauder mais tarde comprou por 135 milhões de dólares para a sua Neue Galerie em Nova Iorque.

O caso Vermeer é mais complexo. Em enquanto o inquérito decorre, a obra pode ser vista na exposição Vermeer: A Arte da Pintura, patente no Kunsthistorisches Museum de Viena até 25 de Abril. a

?Exclusivo PÚBLICO/Bloomberg News

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