A Irlanda e a Irlanda

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LUIS MAIO

A primeira vez que fui à Irlanda do Norte foi numa visita a Belfast, de um dia só. Estava a morar em Dublin, na República da Irlanda, há mais de dois meses, cortesia do programa Erasmus, e apanhei uma camioneta até à capital do lado. Estávamos em 1996 e foi esquisito.

Eu gostava da Irlanda. Da república. De Dublin. Do seu ar de aldeia, de andar pelas ruas a pé bem tarde na noite e não sentir medo. Da música e da Guinness. Das visitas a Glendalough, a Connemara, às ilhas Aran. Das noites na sala do Irish Film Institute onde vi, pela primeira vez, o Citizen Kane. E chegar ao Norte fez-me impressão.

Lembro-me de ver helicópteros a sobrevoar a zona de fronteira e da balbúrdia gerada na central de camionetas de Belfast, quando um passageiro se afastou um pouco do seu saco de desporto preto, pousado no chão, criando a ilusão que a bagagem estava abandonada. Mas não foi isso que mais me causou estranheza. O que parecia mesmo, mesmo esquisito eram as placas com os nomes das ruas já não terem a sua grafia dupla - em inglês e em gaélico. E as matrículas dos carros passarem a ser amarelas, em vez do branco que se usa na república. Nessa altura, senti-me um pouco como se tivessem roubado o meu país. Estava na Irlanda, mas não estava na Irlanda. Foi esquisito.

No ano passado voltei à Irlanda. Não pensei em divisões, em troubles ou em bombas. Não reconheci grande parte de Dublin. A cidade sem prédios está cheia deles. Não pensei duas vezes em alugar um carro, com matrícula de Dublin, e conduzir até ao Norte, para ir ver a costa de Antrim e o Giant"s Causeway. Por isso, foi um choque quando o taxista que nos levava até ao aeroporto para recolher o carro (é muito mais barato alugar um carro com recolha no aeroporto do que no centro da cidade) pareceu muito preocupado por irmos, assim, até à Irlanda do Norte.

Começou por perguntar se éramos católicas, frisando, categórico, que se fôssemos nunca o deveríamos admitir em certas partes do Norte. "Não andem à noite por bairros protestantes com este carro. Evitem locais mais isolados ou zonas com muitas bandeiras inglesas." Fiquei a pensar que os taxistas, pelo menos alguns, são iguais em todo o lado - um poço sem fundo de pessimismo onde apenas se descobre o pior do país onde estamos.

A verdade é que o palavreado do homem acabou por deixar algumas de nós um pouco preocupadas. Não era nada, dizia eu, o homem estava claramente a exagerar, as coisas na ilha estavam calmas há vários anos e, além disso, íamos para uma zona turística, onde o que não faltava, de certeza, eram carros de Dublin.

É claro que não se passou nada. Ninguém nos chateou ou quis saber a nossa religião e todas as pessoas com quem nos cruzámos foram muito simpáticas. O alerta do taxista de Dublin serviu, contudo, para reparar nas bandeiras inglesas de cada vez que nos apareciam à frente - e foram muitas.

Nesse primeiro dia em que deixámos a república, depois de horas a conduzir à esquerda por estradas cheias de obras - parece que todas as estradas decentes da Irlanda decidiram entrar em obras no ano passado -, decidimos que era hora de parar e comer o piquenique improvisado que tínhamos levado. Mas, coincidência ou não, durante quilómetros parecia que só víamos casas com a bandeira branca e azul de Inglaterra espetada sobre a porta de entrada. Confesso que as previsões tenebrosas do taxista pareciam ribombar nos meus ouvidos. Mas o estômago vazio falou mais alto. Parámos o carro numa língua de asfalto, com as casas de bandeiras inglesas alinhadas de um lado da estrada e um rio a correr lá em baixo do outro. Comemos depressa, junto ao nosso carro com matrícula branca de Dublin. Das casas de bandeira inglesa, ninguém espreitou ou saiu à rua. Pouco depois, seguimos viagem.

A Irlanda do Norte é muito bonita. Tão bonita como a república. O taxista de Dublin foi apenas a poeira na engrenagem que, às vezes, é o suficiente para nos fazer perceber que nem tudo é tão pacífico e claro como aparenta ser.

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