Haiti: Um terramoto de 500 anos

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A captital é, hoje, uma cidade devastada Jorge Silva/Reuters

Um artista no meio da destruição. Um ser criativo entre os escombros de uma cidade arrasada. Que pensa ele? Que poderá ele fazer? Chama-se Richard Adelson. "Desde criança que conheço a minha natureza", diz. E seria de pensar que falava de si próprio. Mas não. Refere-se à natureza que o circunda. A Port-au-Prince, ao Haiti. Desde criança que quer ser artista, mas não é isso que está a dizer. É isto: "Eu conheço e amo esta natureza."

Richard tem 28 anos e, ao contrário de muitos jovens da sua idade, nunca quis emigrar. "Para quê? As pessoas que vão para a Europa ou os Estados Unidos fazem-no para trabalhar. A mim não me falta trabalho aqui." Mesmo que não ganhe dinheiro, sabe o que tem a fazer. "Conheço a minha natureza e quero trabalhar nela."

Quer criar, mas no seu mundo. Para Richard, criar é transformar. O espaço em volta é a sua exaltação, a sua realidade e o seu sonho. Vive para lhe acrescentar beleza, que é também uma forma de lhe pertencer.

Pinta desde os 14 anos. Quando disse ao pai que pretendia estudar arte, ele ficou preocupado. Sempre pensou que os filhos poderiam dedicar-se a algum negócio rentável nos EUA. Richard frequentava uma escola integrada na SOS Children, uma organização internacional de caridade com base na Áustria, que cria orfanatos e escolas para crianças pobres na América do Sul, África, Ásia e Europa de Leste. Foi nessa escola que conseguiu matricular-se num curso de artes gráficas. Durante três anos, aprendeu tudo o que pôde: pintura, escultura, cerâmica, caligrafia. Depois tornou-se profissional. "É o que eu faço. É a minha forma de viver."

Desenha anúncios publicitários sob encomenda, faz a decoração de edifícios, pinta bandeiras e corpos (body painting) para cerimónias religiosas e festas, imprime T-shirts, pinta quadros que vende a homens de negócios e outros ricaços, encarrega-se da ornamentação dos populares autocarros que enchem as cidades e estradas do país, os tap-tap. O nome vem do som das palmadas que os passageiros dão na chapa da camioneta, para dizerem ao condutor que querem parar.

No Haiti, ser artiste é uma profissão respeitável, porque é considerada útil. Nada se faz sem embelezamento. Quando um edifício acaba de ser construído, chama-se um artiste para lhe enfeitar a fachada, com motivos geométricos ou figurativos, ou anúncios comerciais pintados à mão, mediante rentáveis contratos com as respectivas marcas. Quando um empresário compra uma carrinha pick-up para a usar como autocarro, construindo-lhe atrás uma caixa em madeira com bancos corridos, contrata um artiste para executar a decoração final. Anúncios, retratos de celebridades internacionais como Madonna ou Michael Jackson, imagens religiosas ou rituais e frases, muitas frases, com muitas cores, podem fazer parte da decoração das carroçarias dos tap-tap. As frases provêm do léxico das igrejas evangélicas, ou de velhas narrativas vudu, ou de restos de imaginário hippie. "Paix. Amour. Union", lê-se no pára-brisas de um tap-tap. Noutro: "Full Love". Neste: "L"Eternel est mon Berger". Naquele: "Dieu dirige mes Affaires". Representações de Baron Samedi, o espírito dos mortos do panteão vudu, com as suas casaca e cartola, rosto branco e óculos de sol, ou da loira Maman Brigite, de vestido negro e lenço em redor da caveira, a beber rum e a esfregar pimentos nos genitais. Também de óculos escuros, que no mundo dos mortos a luz é demasiado intensa.

Tudo isto até ao último milímetro quadrado do tap-tap, em grande confusão de crenças, mundos e tons. Mas em irrepreensível harmonia, porque sempre sob a orientação de um artiste.

Por um tap-tap inteiro, Richard ganha 150 dólares americanos. É uma das suas fontes de rendimento. Outras são os anúncios em fachadas e os quadros com que os membros das classes mais abastadas gostam de decorar as suas salas. Richard gosta de representar o corpo humano e de desenvolver estudos conceptuais, combinando elementos simbólicos de inspiração tradicional e moderna... Mas, para ganhar dinheiro, tem de adaptar-se ao gosto dominante. E o gosto dominante entre a classe alta haitiana é... a pintura abstracta.

"Talvez isso seja um reflexo da sua maneira de pensar." Richard solta uma gargalhada. "É como eles vêem o mundo. Uma confusão sem sentido. Mas também isso tem o seu sentido. Os ricos gostam de ter esse tipo de quadros nas paredes, e eu pinto-os para eles. Simplesmente interpreto a natureza à minha volta."

Richard pinta os seus quadros abstractos como uma espécie de mandalas que propiciam o caos. A ascese a um patamar superior, demasiado alto para o pensamento. Talvez como nunca, hoje, em Port-au-Prince, sobreviver é não pensar. Tal como as pedras e os corpos calcinados, também a ironia está aos pontapés.

Uma tabuleta onde se lê "Nossa Senhora do Eterno Socorro" jaz sobre destroços de um edifício de onde é quase certo que ninguém saiu vivo. No pátio de uma "Morgue Privada" vivem agora amontoados, como numa vala comum, centenas de pessoas cujas casas ruíram. De um restaurante chamado A Mão do Eterno resta apenas um monte de poeira. O edifício verde e branco do Ministério dos Assuntos Sociais sobreviveu para desempenhar firmemente a sua função, ao dar abrigo, nos seus jardins, a muitas famílias desalojadas. Os inúmeros "estúdios de beleza" espalhados pela cidade abateram-se quase todos sobre a sua elegante clientela. À frente do que resta do luxuoso Cacique Villa Hotel vê-se agora uma placa que diz "We need help!". Numa rua completamente destruída, pode ler-se ainda o reclame meio-rasgado de uma casa de fotografia: "A Perfeição. Todos os tipos de reportagem".

Os espíritos usam óculos de sol

O vudu é uma religião de imagens. Os seus rituais precisam de ícones, a sua visão do mundo precisa de símbolos. Para invocar os espíritos usam-se representações gráficas suas, bandeiras pintadas, bonecos. Os houngan (sacerdotes) possuem as suas próprias colecções de bandeiras, estátuas e estampas, que encomendam a artistas. Sempre foi assim. Por isso, a arte do Haiti tem sempre algo de ritual e mágico. Não representa ou interpreta o mundo: é o mundo. Este e o outro, aliás. Os espíritos vão e vêm, encarnam em pessoas vivas, falam, ajudam, aconselham, prevêem o futuro, curam os doentes, ressuscitam os mortos, interpretam os sonhos, alteram o destino. Transitam do mundo dos mortos para o dos vivos, em ambos os sentidos, e as imagens são uma espécie de veículo, tal como o é a música e os versos. Há um ponto onde os mundos se interceptam. Chama-se a Encruzilhada.


O vudu é originário do Haiti, embora os seus deuses e práticas sejam importados dos vários países africanos - Congo, Guiné, Nigéria, Daomé -, de onde vieram os escravos que formaram a população do país. Mas, além destas divindades menores, a que o vudu chama Espíritos, ou Loa, foi também importado um Deus superior a todos eles, Bondye, desta vez pelos colonizadores esclavagistas. É o Deus judaico-cristão, que é adorado pela religião sincrética vudu. Adorado é uma maneira de dizer. Talvez por lhes ter sido imposto (os cristãos obrigavam os escravos a converterem-se ao cristianismo) e por ser o Deus dos patrões, Bondye é considerado inacessível. Criou o mundo, mas depois afastou-se, pensam os houngan vudus. E por isso não vale a pena tentar contactá-lo para pedir favores. Isso é feito com os Loa, a cujo panteão foram acrescentados também vários santos cristãos. Os Loa, representados nas bandeiras de cetim por imagens explícitas ou simbólicas, personificam características, ideias ou personagens. Nas cerimónias (kanzo), que incluem agitar de guizos (ason) e rufar de tambores, derramamento de rum, sacrifícios de animais (ou de humanos, em certos casos), ingestão de sangue, danças com serpentes e (raramente) orgias sexuais, os Loa apoderam-se temporariamente (às vezes para sempre) dos corpos de certas pessoas. Dessa forma, tornam-se presentes, falam e agem. Tanto podem curar doenças de membros da família daqueles em quem encarnam, como causar males terríveis. Uns são bons, outros maus. Os primeiros são da família Rada, os segundos da Petwo. Ninguém tem medo de Erzuline Freda, o espírito do amor, nem de Simbi ou Kouzin Zaka, respectivamente, da chuva e da agricultura. Mas os gémeos Mazara, ou Papa Legba, que toma conta da Encruzilhada, impõem um certo respeito. E Baron Samedi e a sua esposa Maman Brigitte, que têm a cargo a morte e os cemitérios, inspiram verdadeiro terror. Mas não tanto como Tonton Macoute, o papão que caminha pelas ruas depois de escurecer, para raptar as crianças que se deitam tarde e metê-las no seu saco, onde desaparecem para sempre.

Geralmente, por causa da extrema luminosidade do Além, os Loa vêm de óculos escuros, o que chega a ser a única prova de que se trata de um Loa e não o mero sujeito em que aquele encarnou. Tiram os óculos e já não estão lá: o cidadão deixa de estar possesso.

Com esta facilidade com que descem ao nosso mundo, os Loa fazem realmente parte dele. E nós do deles. E em tal promiscuidade de universos paralelos não há impossíveis. É tão fácil ficarmos possuídos por um espírito invisível como sob o controlo de um houngan de intenções malignas. Tão provável que um morto ressuscite como um vivo ser transformado num zombie. E com tal facilidade e frequência fazem os houngans ambos os números que, provavelmente por razões de controlo demográfico, estava até há bem pouco tempo em vigor no Haiti uma lei que proibia a prática de ressuscitamento dos mortos.

Mas só há uma maneira eficaz de evitar que eles voltem à vida: queimá-los, para que a alma siga o seu curso normal e não fique torpemente agarrada ao cadáver. Sempre houve portanto quem achasse prudente fazer isso, quer no caso dos sacrificados pela repressão política durante as várias ditaduras, quer no dos mártires das guerras de gangues, quer no das vítimas dos furacões ou do terramoto do mês passado. Um morto ressuscitado nunca recupera totalmente as suas faculdades, e é aí que está o perigo: os mortos-vivos podem transformar-se em exércitos de escravos ao serviço de quem os ressuscitou.

Apesar das notícias surgidas regularmente nos jornais, não há registo de nenhum ressuscitamento testemunhado por um cientista sério. Já o mesmo não se pode dizer da operação inversa - transformar um vivo num zombie. Os houngans fazem-no. Administrando um produto (tetradoxina) extraído das vísceras do peixe baiacu, induzem no paciente um estado vegetativo, que pode evoluir para uma situação de normalidade motora com perda parcial ou total de capacidades cognitivas e intelectuais. Homens vivos de cérebro vazio, zombies. O resultado é o mesmo: hordas de escravos.

A escravatura é um pesadelo no Haiti. Quer seja através do aprisionamento da alma por um Loa ou um houngan mal-intencionado, quer da zombificação, a possibilidade de voltar a ser escravo está sempre presente.

É um medo ancestral, que sacerdotes e políticos não hesitam em usar. E que, misturado com o sentimento de que o mundo é mágico, tanto pode impelir à libertação, como ser instrumento da mais negra opressão. É por isso que, no Haiti, quem se quer impor aos outros pela violência usa óculos escuros.

Um ritmo novo

O ano de 1957 foi decisivo na História do país. Foi editado o disco que continha a canção De P"ti Piti Kalbass, da banda Ensemble Aus Calebasses, de Nemours Jean Baptiste. Aus Calebasses era um bar no bairro de Carrefour, a sul de Port-au-Prince. A banda costumava tocar lá, em noites de dança que só terminavam pela manhã. Numa dessas noites, o tocador de conga de Nemours, Quedzere Durozo, começou a improvisar um ritmo totalmente novo. Foi o delírio na sala semiobscura e decorada com bandeiras vudu. Alguém disse que a nova batida era muito directa, e assim passou a ser conhecida: konpa direk ou compa. De P"ti Piti Kalbass foi o primeiro hit do compa, e a vida no Haiti nunca mais seria a mesma.


Em Setembro desse mesmo ano de 1957, chegava ao poder, através de eleições, o médico e antigo ministro da Saúde François Duvalier. Em breve passaria a ser conhecido por Papa Doc e estabeleceria uma das mais ferozes ditaduras de que o mundo tem memória.

Não que os anos anteriores tivessem sido fáceis. Após um curto período de paz no final do século XIX, a revolta contra o presidente Lysios Salomon rebentou em 1911. Nos quatro anos seguintes, sentaram-se no palácio seis presidentes, que seriam consecutivamente assassinados ou exilados. Em 1915, Vibrun Guillaume Sam assumiu o poder com mão de ferro, mas, em resposta a uma nova revolta, massacrou 167 presos políticos pertencentes a famílias poderosas. Em consequência, Sam foi linchado por uma multidão numa praça da capital. Logo a seguir, os EUA, que, para garantir os seus interesses, já tinham comprado o Banco Nacional do Haiti, ocupam o país. Os marines mandariam no Haiti até 1934, através de uma repressão brutal. Fazem eleger (na Assembleia Nacional) um presidente-fantoche, tomam conta directamente dos ministérios das Finanças, Saúde e Obras Públicas, criam um Exército (a Gendarmerie d"Haiti), comandado por oficiais americanos, redigem uma Constituição (Franklin D. Roosevelt diria mais tarde que foi ele que a escreveu pessoalmente), impõem o estatuto de protectorado americano.

Mas decidem modernizar o país, construindo estradas. Em três anos, 760 quilómetros, e mais 1600 nos anos seguintes. Como o conseguiram? Desenterrando uma velha lei haitiana, imposta pelos colonizadores franceses: a corveia. Segundo essa norma feudal, os camponeses eram obrigados a trabalhar de graça na construção e reparação de estradas da sua região.

Agora sob escolta de guardas armados americanos, hordas de camponeses pobres que nunca conduziriam um automóvel eram arrastados de suas casas e obrigados a trabalhar o dia inteiro, sem remuneração, na construção de estradas. Era de novo a escravatura e, em 1919, surge de novo a revolta, contra os invasores, liderada por Charlemagne Peralte. Mas os marines mataram-no, fotografaram o corpo e distribuíram as imagens, e o medo, pela cidade. O novo líder da insubordinação foi também assassinado, em 1920. Segundo os números oficiais dos americanos, foram mortos 3250 rebeldes durante este período. Mas os historiadores haitianos falaram mais tarde de 15 mil mortos.

Só em 1934 as forças americanas sairiam do Haiti, e só em 1947 desistiriam do controlo das suas finanças externas. Durante a ocupação, apoiaram-se sempre na minoria de mulatos, desprezando e maltratando os negros do Haiti. Por isso, o país que, para o melhor e para o pior, se habituara a manifestar a sua identidade através da herança francesa, voltava-se agora para a cultura africana. Repudiar o ocupante racista americano era exaltar as tradições e a religião dos antepassados africanos que foram para aqui trazidos como escravos e cujos descendentes constituem hoje a quase totalidade da população.

O médico François Duvalier era director de um jornal (Les Griots) que apregoava esses valores. E após vários anos de golpes e contragolpes, ditaduras e assassínios políticos, Papa Doc ganhou as eleições, em 1957.

A corrupção, a violência, o abuso, o controlo absoluto - físico e mental - da população foram características do seu regime. Papa Doc afirmava-se curandeiro e sacerdote vudu. Dizia ter poderes, reabilitou o vudu como religião do país e convidou muitos houngans para seus conselheiros e detentores de cargos públicos. Principalmente nos serviços de informações e segurança.

Criou uma polícia secreta, um verdadeiro corpo paramilitar designado oficialmente como Voluntários da Segurança Nacional, mas conhecido por Tontons Macoutes, do nome do papão vudu que aparece à noite para meter os meninos num saco.

Os Tontons Macoute espalharam o terror. Perseguiram, ameaçaram, prenderam, torturaram. Mataram mais de 30 mil pessoas. Dizia-se, e eles não o desmentiam, que aos dissidentes políticos que matavam os usavam depois como hordas de zombies, ao seu serviço. No romance Os Comediantes, cuja acção decorre no Haiti de Duvalier, o britânico Graham Greene descreve como as pessoas tentavam desesperadamente encontrar os corpos dos rebeldes assassinados para os queimarem antes que os Tontons Macoutes deles se apoderassem. Acreditava-se que o próprio Baron Samedi, o Loa que tem a seu cargo ressuscitar os mortos, trabalhava para a polícia. A única forma de o deter era lançar fogo aos corpos, o que não se pense fácil. No romance de Greene, em cuja intriga tanto os estrangeiros no país como os seus dirigentes representam papéis de comédia, é narrada uma bizarra e sinistra luta pela urna num funeral.

O consulado de Papa Doc durará, com o beneplácito dos EUA, até aos anos 70, quando lhe sucede o filho de 19 anos, Jean-Claude Duvalier, chamado Baby Doc. Este governará até aos anos 80, quando já era visto como um playboy internacional, gastando milhões de dólares em festas, ao mesmo tempo que o Haiti entrava em descalabro económico e o povo passava fome, e quando foram identificados nos EUA os primeiros casos de pessoas infectadas com o vírus da sida, que, provou-se pouco depois, vinha do Haiti.

No hotel Trianon de Os Comediantes, os arrogantes, prepotentes e estúpidos Tontons Macoutes, sempre de óculos escuros, faziam rusgas diárias em busca de rebeldes. Alguns destes suicidavam-se antes de serem apanhados. No hotel real que inspirou o Trianon, o Oloffson, as coisas não seriam muito diferentes. Sobreviveu até há três semanas e o seu bar tornou-se o templo da música compa. O próprio dono do hotel, o americano Richard A. Morse, era o líder da banda RAM (as suas iniciais), que animava as noites de quinta-feira desde que Baby Doc abandonou o palácio presidencial. A música dos RAM assumiu as raízes vudu (que no tempo dos Duvaliers eram consideradas monopólio do Estado). Morse chamava a esta espécie de compa "voodoo rock"n"roots", e atribui-lhe um engajamento político, de apoio a Jean-Bertrand Aristide, o padre salesiano amigo dos pobres e adepto da Teologia da Libertação que seria eleito Presidente em 1990, e logo deposto e exilado em 1991.

A junta militar que a seguir ocupou o palácio (até 1994), dirigida por Raoul Cédras, proibiu a música no Oloffson e tentou várias vezes assassinar Morse. Com o regresso de Aristide, o bar do hotel reabriu, retomando as festas dançantes de quinta à noite, em que muitos dos participantes eram possuídos pelos Loa. Com o terramoto, o Oloffson ficou parcialmente destruído. Mas foi Morse, com o seu computador e usando o Twitter, quem deu ao mundo as primeiras notícias do sismo.

Os americanos, apesar de tudo

Além das artes plásticas, Richard Adelson também se interessa pela música. Com o dinheiro que foi poupando das pinturas de tap-taps arrendou uma casa em Delmas 75, um bairro elegante de Port-au-Prince, e abriu um bar-restaurante. Sempre que possível, convidava bandas compa para lá actuarem. "Mas queria que fosse música suave, não muito agressiva e barulhenta. Para que as pessoas possam conversar, meditar, sentir-se bem." Também isso fazia parte do impulso de moldar o mundo à sua volta. "A música, tal como a pintura, é importante para colocar as pessoas numa certa atitude."


No restaurante, que o sismo deixou quase intacto, há um balcão com bebidas alcoólicas, quadros nas paredes, de vários artistas. Richard expunha ali as suas obras, ou nas casas de amigos. Nunca na rua. "Há artistas que gostam de vender assim, mas eu não. Seria uma falta de respeito pelo meu trabalho e por mim próprio. Quem gostar dos meus quadros terá de vir ter comigo. Não sou eu que os vou exibir na rua. Tenho de me respeitar. Eu não sou um escravo."

No Haiti, os espíritos dos escravos nunca deixam de estar presentes. E nem todos os cidadãos distinguem bem a repulsa pelo trabalho de escravo e o ódio pelo trabalho em si, como coisa de escravos.

Richard não perdeu o ímpeto criativo desde que a cidade ficou destruída. Sente uma vontade enorme de interpretar artisticamente o que aconteceu. "Quero pintar a mudança. E o que ela significa." Mas não pode porque tinha emprestado as tintas e materiais a um amigo, cuja casa foi arrasada.

No dia do terramoto, Richard andava a passear pelas ruas. Logo após a surpresa inicial, teve uma reacção quase instintiva: foi para casa cozinhar uma grande panela de arroz e veio para a rua distribuí-lo a quem não tinha o que comer. Foi o seu primeiro impulso criativo. Agora, quer ajudar a reconstruir o país.

"Acho que os americanos nos vão ajudar e eu não tenho nada contra. Quero colaborar com eles", diz. "Será sempre preciso alguém para decorar os novos edifícios, para tornar esta cidade bela." Mas um dos seus amigos interrompe-o: "Os americanos vêm ajudar, mas toda a gente sabe que foram eles que provocaram o terramoto."

Richard faz um ar desconfiado, mas não totalmente céptico. O amigo prossegue: "Usaram uma bomba nuclear subterrânea, têm capacidade para isso. E fizeram-no para que agora possam ser recebidos como salvadores, reconstruindo tudo e apropriando-se das riquezas do Haiti." Richard encolhe os ombros. Porque não? Para os haitianos, não há nada que pareça impossível. É tão inverosímil como um exército de zombies assumir a reconstrução. Apesar de tudo, antes os americanos.

"O facto de eles nos ajudarem não significa que percamos a nossa independência", acrescenta outro amigo, que é consultor financeiro e costuma comprar quadros abstractos a Richard. "É preciso um novo Plano Marshall. Depois, temos de ser merecedores de confiança, para que tenhamos empréstimos a 20 ou 30 anos", explica Tzetzes Stanley Quitel, cujo cartão de visita está decorado, um pouco à maneira das bandeiras vudu, com cifrões e símbolos do euro. "Durante esse período, temos de aceitar que sejam eles a impor as regras. Não temos outro remédio. Depois, se conseguirmos cumprir as nossas obrigações, voltaremos a ser livres."

Richard nem se preocupa com isso. Os americanos serão sempre melhores do que os políticos haitianos. "Ouvi o que Obama disse e estou à espera que ele assuma o controlo das coisas. Odeio os políticos do Haiti. Só pensam em ganhar dinheiro e nunca fizeram nada pelo país. Os jovens não têm emprego, a economia está de rastos. Os políticos do Haiti são lixo. Esta é a oportunidade de os mandarmos embora. Estou pronto para um novo Haiti. É preciso deitar fora o lixo. Tudo tem de ser novo."

Os gangues do Haiti

Os vários grupos da oposição não discordarão disto. Já anunciaram, aliás, a criação de uma frente para substituir o Governo, incapaz de dar resposta ao caos causado pelo terramoto. Mas as ligações entre os políticos e quem tem armas estabelecem-se por fidelidades pessoais. Nas últimas décadas, foi dissolvido o exército e criada uma polícia especial, leal ao Governo. A oposição conta com o apoio de líderes de gangues, que tinham sido presos no último ano mas agora reconquistaram a liberdade, quando as paredes da penitenciária caíram. São criminosos e estão a reorganizar os seus gangues, que efectuam assaltos, para distribuir bens e comida pelos pobres dos seus bairros. Principalmente a Cité Soleil, a zona mais miserável e perigosa da cidade.


Mas serão eles bandidos ou militantes políticos? Tal como a música compa e o voodoo rock"n"roots, também os gangues da Cité Soleil apoiaram Aristide. A polícia garante, aliás, que foi ele que os criou e armou.

Após o golpe de 1991, que, segundo Aristide, foi planeado e executado pelos EUA, a junta de Cédras massacrou os elementos da oposição. Mais de cinco mil foram mortos e muitos mais foram presos. Em 1994, porém, após uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, Bill Clinton enviou a Port-au-Prince o antigo Presidente Jimmy Carter (em simultâneo com um contingente de forças especiais) para convencer as autoridades a demitirem-se e aceitarem o regresso de Aristide. A iniciativa teve êxito. Aristide regressou e venceu as eleições do ano seguinte. Mas as dissensões no seio do seu próprio partido, o Lavalas, levaram a nova crise, com o novo Presidente, René Préval, a dissolver o Parlamento e a passar a governar por decreto. Em 2000, Aristide voltou a ganhar, em eleições boicotadas pela oposição, e voltou a haver distúrbios, só atenuados pela presença de tropas americanas no território. Em 2004, exércitos de rebeldes refugiados nas montanhas marcharam sobre a capital e o Presidente foi obrigado a fugir de novo para o estrangeiro, com a ajuda dos americanos. A versão de Aristide é que o golpe foi, mais uma vez, organizado pelos EUA, que no último momento o "raptaram", num avião que o levou para a República Centro-Africana.

Em todas estas fases, os líderes dos gangues de Cité Soleil foram usados por uns e por outros. A maioria, no entanto, manteve-se leal a Aristide, que criara ele próprio o bairro de Cité Soleil, para dar oportunidades aos pobres. Durante o seu exílio, os gangues continuaram armados e activos. Combates entre o partido Fanni Lavalas, de Aristide, aliado aos chefes de gangues, e a polícia eram constantes.

E quando o Presidente do Supremo Tribunal pediu à ONU para enviar forças de manutenção de paz, estas, formadas inicialmente por fuzileiros americanos, mas depois, principalmente, por brasileiros, não tiveram outro remédio senão combater os gangues armados. Em 2005 consta mesmo que um contingente da MINUSTAH (a missão de estabilização da ONU no Haiti) perpetrou um massacre contra a população de Cité Soleil, que está incondicionalmente ao lado dos seus líderes de gangues.

Serão estes bandidos ou activistas políticos? Um deles, Amaral Duclona, depois de, no ano passado, ter sido preso na República Dominicana, deu uma entrevista. "Somos militantes políticos, que lutam pelos direitos do seu povo", disse Amaral, queixando-se da incompreensão das elites e da comunidade internacional. "Quando Charlemagne Peralte combateu os marines, ninguém o compreendeu, mesmo depois de os marines terem assassinado 50 mil pessoas dos "cacos", os grupos que se opunham à ocupação americana do Haiti", exemplificou Amaral. Mas levou a comparação mais longe: "Quando Dessalines lutava, a sua luta não foi compreendida. Quando Toussaint Louverture lutava, também não o compreenderam."

Mas será então que é a mesma luta? Dessalines e Louverture foram os líderes da revolta de escravos que deu origem ao Haiti como país independente, no final do século XVIII. Até então, a parte ocidental da ilha Hispaniola, cultivada de tabaco, índigo, algodão, cacau, açúcar e café à custa do trabalho de 800 mil escravos trazidos de África, era a mais rica colónia do império francês. Chamavam-lhe a "Pérola das Caraíbas". Mas as coisas correram mal. Para todos.

Ser livre

Cristóvão Colombo chegou aqui em 1492, reclamando a ilha para a coroa espanhola, mas foi por volta de 1510 que os primeiros missionários se instalaram. As populações autóctones, que chamavam à ilha Ayiti, foram praticamente exterminadas pouco depois. Ao mesmo tempo, fixou-se na pequena ilha de Tortuga, a norte, um bando de corsários franceses. Eram os verdadeiros piratas das Caraíbas, que depois se mudaram para a ilha principal, levando a que a Espanha viesse a reconhecer, pelo Tratado de Ryswick, o terço ocidental da Hispaniola como colónia da França de Luís XIV.


A importação de escravos africanos começou logo, de diferentes países, diferentes tribos, diferentes línguas, a um ritmo anual de dezenas de milhares. Para tudo funcionar melhor, Luís XIV emitiu o Code Noir, que permitia castigos físicos aos escravos. Sob essa protecção legal, era normal crucificá-los, enterrá-los vivos, amarrá-los a postes nos pântanos, para que fossem comidos pelos mosquitos, metê-los em caldeirões de água a ferver, obrigá-los a comer excrementos. Isto, segundo testemunhos da época, credíveis e moderados.

Muitos escravos não aguentavam e fugiam para as montanhas. Foi numa dessas comunidades de maroons que surgiu a primeira revolta, chefiada por um escravo de origem guineense e com um só braço chamado Mackandal.

A história de Mackandal foi contada pelo cubano Alejo Carpentier, num romance intitulado O Reino deste Mundo, que muitos críticos consideram o primeiro exemplo de realismo mágico, que faria escola na América Latina. Terá sido a única forma que Carpentier encontrou para explicar a estranha realidade cultural do Haiti.

Mackandal era um sacerdote vudu. Quando perdeu um braço no engenho de moagem de cana do açúcar deixou de ter interesse para os seus donos, pelo que conseguiu facilmente fugir, em 1751. Os anos seguintes passou-os a atacar as plantações, a lançar feitiços e a provocar envenenamentos. Até ter sido capturado e queimado vivo na praça pública, diz-se que matou seis mil pessoas. E que pregou todos os dias a sua visão fanática sobre o fim da civilização do homem branco.

Desde o início, o vudu foi uma forma de resistir e combater os colonizadores esclavagistas. A segunda grande revolta, que seria o ponto de partida para a revolução haitiana, teria também como protagonista um houngan: Dutty Boukman.

Era um escravo jamaicano de estatura colossal, que seria vendido pelo seu amo inglês a um francês proprietário de uma plantação em Saint Dominique, como se designava o Haiti. Além de sacerdote vudu, Boukman tinha outra particularidade: sabia ler. Aprendeu sozinho, não se sabe como, e dedicava-se a ensinar outros escravos. O seu nome vem da alcunha que tinha na Jamaica: Dirty Book Man, um homem de livros, apesar de escravo e sujo.

Em Agosto de 1791, numa floresta chamada Caiman, Boukman e uma outra sacerdotisa, de origem africana, presidiram a uma cerimónia vudu em que foi decidida a revolta que libertaria os escravos de Saint Dominique. Foram designados os líderes da revolução. A seguir sacrificaram um animal, que simbolizava o espírito livre e selvagem da floresta, e todos beberam o seu sangue, jurando destruir os bens dos opressores e todas as imagens do seu Deus. Uma semana depois, 1800 plantações foram destruídas, e mais de mil proprietários de escravos assassinados.

Sem compreenderem o significado da cerimónia do Bosque Caiman, os cristãos da época disseram ter-se tratado de um pacto com o diabo, que levaria à revolução. Na semana passada, o televangelista ultraconservador americano Pat Robertson voltou a referir-se ao "pacto com o diabo" do Bosque Caiman, para explicar o terramoto do dia 12 de Janeiro. "O Haiti está amaldiçoado", disse Robertson. Boukman, que é hoje um Loa do panteão vudu, continua a não ser compreendido.

Depois de 1789, os ecos da Revolução Francesa chegaram à colónia do Mar das Caraíbas. Os mulatos, também chamados gens de couleur, filhos de esclavagistas brancos e suas concubinas escravas, reclamaram direitos de cidadania e igualdade, à luz da Declaração dos Direitos do Homem. A Assembleia Nacional, em Paris, reconheceu-lhos, num decreto que um enviado, Vincent Ogé, foi a Port-au-Prince aplicar. O governador local discordou, e o revolucionário Ogé incitou à sublevação os gens de couleur. Estes atacaram as forças coloniais, mas foram derrotados, por se recusarem a armar os seus próprios escravos, ou a conceder-lhes a liberdade. Ogé seria executado.

Nos anos seguintes, rebentaram os combates entre grupos de escravos negros, comandados por Jean-Jacques Dessalines e Toussaint Louverture, e o exército colonial branco. Os escravos tiveram a seu lado revolucionários franceses, enquanto os esclavagistas contaram sempre com a ajuda dos mulatos.

Em 1801, Louverture proclamava-se vencedor e declarava a abolição da escravatura em toda a ilha. Mas não exigiu a independência, nem a expulsão dos brancos, por considerar que precisaria da sua ajuda. Não previu que os ventos iam mudar em França. No ano seguinte, Napoleão Bonaparte enviou o cunhado, Charles Leclerc, com 40 mil soldados e a missão declarada de devolver o poder à elite branca e a secreta de restabelecer a escravatura e retirar a cidadania aos mulatos. Convenceu Louverture a negociar um acordo, mas depois enganou-o. O líder da revolução foi deportado para França, onde morreria, mas os seus seguidores continuariam a guerra, plena de atrocidades.

Do lado dos franceses, 24 mil morreram, entre os quais Leclerc. Foi substituído por Donatien-Marie-Joseph de Vimeur, visconde de Rochambeau, que estava disposto a usar métodos mais radicais. Anunciou logo a Napoleão que iria declarar todos os negros escravos e matar pelo menos 30 mil. E começou a enforcar, afogar, queimar ou enterrar vivos os prisioneiros que ia fazendo. Uma noite deu um baile para o qual convidou todas as damas mulatas, e à meia-noite anunciou-lhes que acabara de matar os seus maridos. Era tal a brutalidade de Rochambeau, que conseguiu finalmente unir mulatos e negros.

Depois de uma batalha, enterrou vivos 500 prisioneiros. Dessalines, que comandava as forças dos escravos, respondeu de imediato enforcando 500 prisioneiros franceses. Rochambeau fez queixa a Napoleão, que teve a ideia de uma solução final. Segundo um livro publicado em 2005 pelo historiador Claude Ribbe, o monarca francês mandou extrair enxofre de vulcões da região, para produzir gás de dióxido de enxofre, extremamente venenoso. Depois, de acordo com a investigação de Ribbe, foram usados os porões dos navios para concentrar milhares de escravos rebeldes e matá-los pela inalação do produto. Mais de 100 mil escravos terão sido vítimas desta modalidade de extermínio em massa em câmara de gás, 140 anos antes de Hitler.

Em 1803, as forças francesas foram derrotadas por Dessalines, que no ano seguinte declarou a independência, mandou degolar todos os franceses no território, que baptizou como Haiti, e se autoproclamou Imperador: Jacques I. Dois anos depois, foi ele próprio assassinado, por dois antigos companheiros, num paradigma do que viria a ser a história do país.

E, no entanto, hoje, entre os escombros de uma cidade devastada, por cima de lixeiras onde ardem dejectos e corpos humanos, no meio de pilhagens e combates à catanada por um pedaço de comida, em frente a um palácio presidencial partido em pedaços, um jovem artista como Richard Adelson ainda tem a coragem de olhar nos olhos um estrangeiro e dizer: "Eu conheço a minha natureza. A natureza que me rodeia. E sei que posso ser livre. É só isso que quero, mais nada. Ser livre." Quinhentos anos depois da chegada dos primeiros missionários europeus à ilha, terá a terra finalmente parado de tremer em Port-au-Prince?

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