Alguém pediu uma larva crua?

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Sofrendo um castigo durante as filmagens do programa DR/DISCOVERY CHANNEL

No programa que os portugueses podem acompanhar à quarta-feira no cabo, exemplifica como sobreviver a situações extremas nalguns dos locais mais perigosos do planeta. Muitos lembram-se dele por comer e beber as coisas mais nojentas. Chama-se Bear Grylls e é um aventureiro com permanentes saudades de casa. Que, por acaso, até é um barco.

Tem 35 anos, é casado, pai de três filhos e o seu emprego obriga-o a passar muito tempo longe da família. O cenário aparenta ser bastante comum, mas acaba aqui tudo o que possa ter a ver com uma vida normal. Porque estamos a falar de Bear Grylls, o apresentador do programa Ultimate Survival, o homem que passa a vida, segundo as suas próprias palavras, a pensar que devia "arranjar um emprego a sério". Isto enquanto mostra como sobreviver em pântanos infestados de répteis, desertos gelados e escaldantes, montanhas traiçoeiras e selvas assassinas.

De caminho, come o que consegue apanhar, desde vermes a aranhas, passando por cobras vivas; bebe o que lhe aparece a jeito (espremendo fezes de elefante ou o conteúdo do estômago de um camelo morto, por exemplo, mas também a própria urina, em alguns casos); acampa ao relento, atravessa rios gelados, ilude predadores letais, escala paredes verticais, desce ravinas a pique, caça debaixo de água, dorme dentro de animais mortos, arrisca-se em grutas desconhecidas, enfrenta trovoadas. E gosta.

A vida ao ar livre e o espírito de aventura foram uma constante da sua vida e Edward Michael Grylls, cognominado "Bear" - "De Edward veio Teddy, e logo depois Teddy Bear, para finalmente ficar só Bear" -, garante que a preparação para os desafios radicais que enfrenta já vem desde os quatro anos, a idade em que começou a sair para o campo com o pai, o político conservador britânico Sir Michael Grylls. Foi ele que o incentivou a iniciar-se na escalada e na vela, detonando uma paixão avassaladora pelas actividades de aventura que o ingresso nos escuteiros, primeiro, e na tropa (serviu no corpo especial SAS 21), depois, só vieram reforçar.

Apesar de não haver detalhes sobre o incidente - e este não será o único episódio da vida deste one man show a deixar reticências pelo caminho -, Bear Grylls sofreu um acidente gravíssimo no Quénia, em 1996, numa missão militar que muitos dizem nunca ter existido. O seu pára-quedas ensarilhou-se e a queda foi inevitável. Com fracturas nas oitava, décima e décima segunda vértebras, Grylls esteve muito perto de ficar paraplégico. Mas recuperou.

Como que para celebrar a vitória sobre o espectro da invalidez permanente, lança-se na tentativa de concretizar um sonho de infância. Apesar de mais um acidente - caiu numa fenda de gelo durante o período de aclimatização à altitude -, pisa o cume do Evereste a 16 de Maio de 1998, tornando-se, aos 23 anos, o mais jovem britânico a alcançar o ponto culminante do planeta. Bom, talvez não, acentuam os seus críticos - e ele tem-nos, na exacta medida da sua exposição mediática. Três anos antes, James Allen (22) escalara a montanha e o seu passaporte referia dupla nacionalidade, australiana e britânica.

O caminho da fama

Chegamos a 2000 e Bear Grylls protagoniza mais uma acção mediática: organiza a primeira circum-navegação do Reino Unido em jetsky, como forma de angariar donativos para uma instituição de socorro no mar e nas praias. No mesmo ano, e para ajudar um amigo que perdera uma perna num acidente de alpinismo, remou 22 milhas ao longo do rio Tamisa a bordo de uma banheira feita em casa. Pormenor picaresco: fê-lo todo nu.

Aventura e boas causas, sempre lado a lado. E um crescendo da sua popularidade, c especialmente depois de ter liderado uma expedição de travessia, sem assistência, do Atlântico Norte Árctico, a bordo de um semi-rígido aberto. Entretanto já tinha conseguido - em part-time, está bem de ver... - uma licenciatura em Estudos Hispânicos, na Universidade de Londres (2002).

Não lhe terá servido de muito, porque a sua viagem seguinte, sendo, na verdade, para a América do Sul, levou-o para paragens pouco habitadas: em 2005, na Venezuela, tentou sobrevoar as cataratas de Angel, as mais altas do planeta, em ultraleve motorizado. Nesse mesmo ano assinou um recorde do mundo sui generis ao jantar, em traje de gala, numa mesa suspensa de um balão a 7750 metros de altitude. Deve ter sido uma ginástica curiosa levar a comida à boca com a máscara de oxigénio posta...

Reservas mais sérias levantou a sua alegação de que, em 2007, terá conseguido voar mais alto do que o monte Evereste num ultraleve motorizado. Bear garante que esteve a 9145m e que "tudo foi filmado" para um documentário, mas especialistas levantam sérias dúvidas sobre este recorde mundial - até aí, o máximo estava em 6206m e os instrumentos levados pelo aventureiro britânico congelaram a temperaturas próximas dos 60 graus abaixo de zero, invalidando uma prova cabal das suas pretensões.

Por esta altura já o britânico nascido a 7 de Junho de 1974 na Irlanda do Norte se tinha tornado uma estrela à escala planetária. Tinha publicado livros onde relatava as suas aventuras e apresentado um programa do Channel 4 britânico, chamado Escape to the Legion, onde se recriavam as condições de treino dos soldados da Legião Estrangeira no Norte de África. Foi então que apareceu o convite para ser a cara de um dos mais marcantes programas televisivos dos últimos anos: Born Survivor no original do Channel 4; Ultimate Survival nas emissões do Discovery Channel em África, Ásia e Europa; Man vs. Wild na Austrália, Canadá e EUA.

Acusações de fraude

A ideia é simples: Bear Grylls é lançado de pára-quedas ou largado de helicóptero em regiões remotas e exigentes, cabendo-lhe mostrar como sobreviver e encontrar o caminho de regresso à civilização. É por isso que este pai de família com residência numa barcaça no rio Tamisa, em Londres, e casa de férias numa ilha em Gales passa muito tempo longe da mulher e dos filhos. Leva sempre uma fotografia deles, mais uma faca, um cantil, um relógio e uma isca para fazer fogo. Isso e a sua fé cristã, que o acompanha sempre.

Na verdade, e porque se trata de um programa televisivo, o aventureiro está sempre acompanhado - normalmente por um operador de câmara, um engenheiro de som e um especialista em segurança. Tudo ou quase tudo o que ele faz, fá-lo também o principal operador de câmara da equipa, o britânico Simon Reay, embora por vezes com mais meios de protecção. No site do programa, o operador de câmara recorda algumas situações marcantes. Lembra-se de congelar uma mão assim que saiu da água na Sibéria ("Tinha uma luva de 5mm de espessura... como é que o Bear fez aquilo sem roupa é coisa que nunca hei-de perceber!"), de nadar entre aligatores na Florida, de se atirar de um helicóptero atrás do apresentador e de ele lhe repetir a frase que já se tornou rotineira: "Não me caias em cima com essa câmara!"

Nas séries mais recentes do programa, o produto final dá mais ao telespectador a noção de que este e outros homens estão lá e, no início de cada episódio, surge também uma mensagem assumindo que algumas situações são ensaiadas e outras criadas artificialmente para mostrar aos espectadores os procedimentos mais adequados. Em entrevistas mais recentes, Grylls também assumiu que só dorme ao relento quando é preciso filmar, que estuda a fundo a fauna e a flora das regiões que visita e se aconselha com as autoridades e especialistas locais em vida selvagem.

Isto porque a comunidade dos desportos aventura e muitos guias começaram a expor as zonas cinzentas do programa. Bear Grylls apareceu a domar "cavalos selvagens" que tinham sido trazidos de um rancho ali perto; montou uma jangada de troncos que tinha sido previamente feita e desfeita à sua frente por um perito; filmou cenas numa "ilha deserta" que era uma península no Hawai... Para os seus críticos, isto chama-se fraude, para o Channel 4 e o próprio Bear Grylls são truques de produção necessários para acelerar o ritmo de trabalho "Filmar-me no exterior dias a fio à espera que acontecesse algo não é razoável..."

O petisco berbere

Adiante. Com truques ou sem eles, facilmente se percebe que Bear arrisca a pele de forma contínua e assumida ao longo dos muitos episódios. Já enfrentou as temperaturas geladas da Sibéria e o inferno húmido e quente das florestas tropicais, passou sede no deserto e venceu as vertigens nas montanhas.

Quando, no site do programa (http://dsc.discovery.com/fansites/manvswild/manvswild.html), lhe pedem para fazer o top-10 das suas lesões, desrespeita a limitação numérica e enumera: "Ombro partido, cartilagem do joelho esmagada, fractura no dedo grande do pé, grave infecção no dedo grande do pé, queimaduras solares sérias, queimaduras de gelo num pé e seis dedos, tíbia rachada, mais golpes e nódoas negras do que dá para contar, infecções nos ouvidos, diarreia, vómitos, costela rachada, anca deslocada, vértebra deslocada, vergões, pontos, insolação, dentes lascados, mordidas de cobras, morcegos, escorpiões, caranguejos e cerca de 4319 mosquitos!"

Uma rápida visita às suas mais recentes entradas no Twitter permite actualizar a lista. Escreveu Grylls: "Acabo de ser resgatado de helicóptero numa montanha no Canadá. Atingido por uma câmara metálica que deslizou por uma encosta íngreme abaixo..." (16 de Dezembro de 2009); "tenho um grande hematoma na coxa, mas estou vivo. Tive sorte. Estou dorido. A caminho de casa" (16 de Dezembro de 2009); "hematoma, melhor (só mais uma lesão a juntar à cada vez maior lista!), mas já recuperei e vou para o Sara na segunda-feira para começar as filmagens da nova temporada" (2 de Janeiro de 2010).

Foi, aliás, no maior deserto do mundo que Bear foi confrontado com o seu desafio mais complicado. Num acto de simpatia, uma tribo de berberes presenteou-o com um pitéu: testículos de bode crus. E ele falhou miseravelmente. O homem que, perante as câmaras, engoliu (e usamos as suas próprias palavras) "olhos de iaque congelados e crus; sucos de intestino de camelo; cobra viva; larvas do tamanho da mão, pulsando com pus amarelo; e aranhas gigantes vivas", não resistiu e vomitou. Atendendo a que já o víramos beber a própria urina, guardada no interior da pele de uma cascavel recém-morta, resta-nos fazer uma nota mental: evitar, a todo o custo, a hospitalidade berbere!

Extraordinário é que, na sua lista de lesões, não cite sérios problemas de estômago... Mas talvez isto explique que, quando não está em "modo de sobrevivência", Bear Grylls adopte um regime alimentar essencialmente vegetariano. Não é a única faceta do homem que difere radicalmente da sua imagem como apresentador. Quando perguntam a este campeão de audiências, autor de sucesso e orador motivacional o que realmente lhe mete medo, ele é taxativo: "Entrevistas e cidades estranhas." a?

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